(Quase) Dois Anos em uma Pandemia

Um relato sobre a minha vida durante 21 meses da pandemia de COVID-19 no Brasil.

Novembro de 2021, uma tarde de sábado ensolarada. Eu coloco uma máscara simples e saio para correr. Passo pela avenida, subo por algumas ruas menores em direção ao parque. O dia está excepcionalmente calmo, há poucas pessoas zanzando, mas talvez 30% esteja sem máscara. Deve ser por causa da chuva que passou, o ar está abafado. No parque há uma feira de artesanato com pouquíssimas pessoas. Eu sigo na corrida, passo perto de uma zona boêmia, mais cheia, encontro um casal de amigas, elas vieram para tomar uma cerveja no final de tarde. O cumprimento é um toque no ombro. Cada um de nós está de máscara e papeamos por alguns minutos, distantes pelo menos um metro. Sigo para casa.

Eu nunca pensei que viveria algo assim. está chegando 2022 e desde Março de 2020 vivo a pandemia de COVID-19. De lá para cá rascunhei alguns textos para colocar aqui, mas nada parecia muito relevante. Nada que eu fazia ou pensava parecia ter alguma importância. Vivi um momento histórico, uma emergência mundial, e o único esforço continuado que eu pude fazer foi reduzir meu tempo fora de casa, usar máscaras PFF2 e higienizar as mãos. Faz três meses que eu tomei a minha segunda dose da vacina. Só agora comecei a reencontrar os amigos.

O Início

Tudo começou em 2019, na China, na cidade de Wuhan. Alguns jornais “ocidentais” anunciavam uma misteriosa doença, afirmando que o governo chinês queria esconder os fatos, e que whistleblowers, médicos que iam contra a censura, pintavam um quadro bastante desolador na cidade. Era muito difícil saber o que era exagero, afinal, mesmo a mídia chinesa também anunciava, não nos mesmos termos, que alguma coisa estava errada. Na guerra fria do século XXI a cortina não é mais de ferro, está nas entrelinhas das notícias. Apesar de terem identificado um novo coronavírus no dia 9 de Janeiro tudo parecia muito distante, como mais um surto de gripe suína. Foi apenas quando Wuhan entrou em lockdown, no dia 23 de Janeiro, que aquilo começou a se tornar um acontecimento. Os jornais passaram a noticiar o pesado toque de recolher, pessoas passaram a ter horários específicos para sair de casa e a cidade parecia abandonada. Assistir as notícias da BBC, CNN ou DW era como assistir a uma série de televisão, cidadãos sendo trancados em casa, suas vidas interrompidas. Eu não pude deixar de notar a mensagem nos editoriais, afirmando que o confinamento era autoritário e que só poderia ser feito em um país repressivo e ditatorial.

Eu já tinha passado por surtos de doenças antes, as mais graves foram o H1N1 de 2009 e a Zika/Chikungunya de 2015. Um conhecido meu faleceu em 2009, mas sinto isso como um triste acidente; afinal, a doença havia sido controlada por uma campanha de vacinação em pouco tempo. A Zika era um conto de terror dos lugares mais distantes do Brasil, um perigoso vírus que causa microcefalia. Milhares, talvez dezenas, ou mesmo centenas, de milhares de pessoas foram afetadas nesses surtos, mas nunca na mesma escala como o que estava para acontecer. Em 30 de Janeiro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o COVID-19 como uma ameaça séria a saúde pública. Em menos de dois meses ela se tornaria uma pandemia global.

Ruas Esvaziadas

Quando a COVID chegou na Itália, os jornais começaram a mudar o tom. O primeiro caso no país foi detectado no dia 15 de fevereiro, e no início de março chegou a tragédia. Vi, dia após dia, os hospitais se enchendo de pacientes, idosos sendo entubados, cemitérios cheios e pessoas se isolando socialmente. O vírus cruzara a cortina de ferro, não era mais algo do outro mundo, não era mais algo distante, mas uma tragédia acontecendo em tempo real. Acompanhando as notícias com preocupação, mas ainda sem saber se a pandemia chegaria no Brasil, segui na minha rotina normal, fui a aniversários, formaturas e até a inauguração de uma loja de uma conhecida. Lembro de vídeos de hospitais cheios de idosos e de italianos solidários que cantavam nas suas sacadas para animar os vizinhos. Ninguém tinha ideia do que iria acontecer.

Dia 8 de março foi o meu último encontro presencial com os amigos. 11 de março a OMS declarou o COVID-19 como uma pandemia global. Dia 13, o Brasil publica a primeira portaria sobre as medidas de contenção e isolamento do vírus. Dia 14, as aulas foram suspensas. Nesse curto período o mundo virou de cabeça para baixo, e eu já não podia nem mais fazer o experimento da minha tese. Dia 16 começou a “quarentena”. Numa manhã eu acordei e encontrei as ruas da cidade vazias, eu estava em Wuhan. Lembro que saí para dar uma corrida, até parecia um feriado.

Desde as eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro se tornou o presidente do Brasil, eu vivia meio que numa emergência. Briguei com conhecidos e familiares enquanto assistia o contínuo aparelhamento do estado, a destruição das políticas públicas e ambientais, assim como as maiores queimadas da história do país. Para mim, eu já vivia a maior crise da história, algo que só pode ser descrito como uma loucura nacional. De repente, foi como se tudo se suspendesse no ar.

A Realidade em Disputa

Minha cabeça foi rapidamente tomada pela pandemia. Durante os primeiros meses, eu desesperadamente procurei projetos sociais e iniciativas para tentar contribuir, como o mutirão contra a fome, do Movimento dos Pequenos Agricultores, e o mutirão para dar internet a estudantes que não poderiam mais ir à escolas. Fiz materiais informativos, trabalhei na construção de redes de contatos, li bastante… A maioria desses esforços não duraram mais do que alguns meses.

As pessoas mais otimistas acreditavam que seria um trimestre de isolamento social para voltarmos à normalidade. Infelizmente, não foi bem isso o que aconteceu.

Enquanto estávamos tentando nos orientar e construir uma nova rotina (eu, por exemplo, demorei quase um mês para começar a usar as máscaras), o governo se recusava a aceitar a gravidade da pandemia. Não houve nem mesmo a instalação de barreiras sanitárias nos aeroportos e, neste primeiro mês, ouvíamos de casos aqui e ali de festas que espalhavam COVID para centenas de pessoas. Enquanto eu me debatia sobre a importância de usar as máscaras PFF2, as carreatas começaram, movimentos para manter o comércio aberto, geralmente com pessoas usando roupas verde-amarelo, se espalharam pelas cidades do Brasil. A proposta era uma “imunidade de rebanho” e o “isolamento vertical”, estavam realmente discutindo de separar os grupos de risco, como idosos, e deixar a população geral se contaminar acreditando que a pandemia “passaria logo”. A situação foi tão absurda que não houve números oficiais da COVID produzidos Brasil, eles foram coletados por um consórcio de jornais, e pode-se dizer que o próprio presidente executou uma “estratégia de propagação da pandemia”. Todo esse plano de negação, também foi proposto em vários lugares do “mundo ocidental liberal(especialmente EUA e Inglaterra), contrastando com países como a China, a Coreia do Sul, o Vietnã, Israel e outros que implementaram rigorosos protocolos de biossegurança, test and trace e quarentenamento para reduzir o contágio ao máximo. Muita gente comprou isso, sob um grito de que estavam lutando por sua liberdade (de novo, a tal da cortina de ferro)…

Perdi a conta de quantas vezes uma figura pública, um colunista, um economista, empresário, personalidade ou político, veio dizer que o isolamento é ineficaz e/ou danoso, que faz mal para a economia, que o melhor mesmo era deixar a doença se espalhar. Algumas posições mais suicidas afirmavam que haviam medicamentos que seriam uma cura secreta que a OMS estava escondendo de nós. Li relatos de pessoas que tiveram falência hepática por causa dessa automedicação desesperada, e de médicos que mataram pacientes com procedimentos bizarros, aplicando remédios de forma incorreta e letal. Pensar em algo que nos faz se sentir vulneráveis é muito difícil, muita gente se coloca em risco na tentativa de se sentir segura.

O Tempo não Pára

A vida no auge da pandemia foi de uma rotina muito rígida. Todo dia, acordava às 7:00 com o meu despertador. Levantava e tomava um café da manhã, geralmente uma caneca de café, lavava a louça, os óculos, escovava os dentes e ia para o banho. Pelas 9:00 eu sentava na frente do computador para começar a ler notícias e redes sociais, como o twitter, que acesso apesar de não ter conta, para ver qual o tópico do dia. Tudo isso até umas 10:00, às 11:30 eu ia almoçar. De segunda à sexta almoçava na casa de minha mãe, a única pessoa com quem mantive convívio, sábado e domingo, almoçava em casa. Às 16:00 eu saia para correr, e a janta era às 20:00. Eu ia dormir às 22:30. Durante todo o dia, nos horários não especificados, “trabalhava”, uma atividade que me causava estranha desorientação, alguns minutos de escrita e/ou leitura intercalados por visitas compulsivas a sites de notícias, ao twitter de jornalistas e aos feeds RSS e escapadas a videos do Youtube, conversas pelo Whatsapp e livros e séries. Pouquíssimas vezes essa rotina foi quebrada, alguns dias eu ia à feira ou a supermercado, tinha também o dia de cortar o cabelo… Algumas emergências aconteceram, o cabo de internet rompeu e passei três dias com os técnicos até resolver o problema; a válvula hidra no banheiro estourou e tive que chamar um encanador na emergência. Dá para contar nos dedos de uma mão os dias que me encontrei com alguém diferente. Durante esse período, tivemos semanas com uma média de mais de mil pessoas morrendo de COVID por dia. As cenas mais horríveis ocorreram em Manaus, cidade que passou por dois colapsos do sistema hospitalar. Mesmo com as emergências médicas, a falta de oxigênio e medicamentos para intubação, mesmo com cenas de pessoas em camas pelos corredores dos hospitais e de enterros em valas comuns não encerraram o negacionismo. Nem todo mundo aceitava ouvir notícias e olhar as imagens.

Apesar de estar em isolamento social, mantive constante contato digital com amigos e colegas. Memes, fotos e notícias, explicações de como fazer alguma coisa, desabafos, são muitas as mensagens que pontuam o meu dia. Essa é uma forma de se comunicar bastante trabalhosa, algumas conversas bobinhas chegavam a ocupar meia hora de digitações de textos e áudios com explicações do que realmente se queria ter dito. Videochamadas também tem seus problemas próprios, muitas vezes são precedidas por uma verdadeira sessão espírita até que o contato seja estabelecido (“você está aí?”). Nestes meses, não fui a restaurantes, bares e cafeterias; minhas poucas saídas foram aos parques, apenas para correr. Em apenas duas ocasiões saí da cidade, passando apenas uma noite fora.

Foi em Setembro de 2020 que as primeiras vacinas entraram na fase três de testes, seriam testadas em seres humanos. Os institutos Butantã (do governo do estado de SP) e a Fiocruz (autarquia vinculada ao governo federal) tinham se articulado para trazer as vacinas ao país, praticamente de forma independente, num ato de rebeldia contra o governo. No dia 17 de Janeiro de 2021, Mônica Calazans foi a primeira brasileira vacinada contra o COVID. Eu só tomaria a minha primeira dose em setembro de 2021, um ano e seis meses depois de tudo começar.

O Futuro e o Passado que Ficou de Fora.

Não escrevi aqui sobre o assassinato de George Floyd e os movimentos Black Lives Matter, ou da fundação da Capitol Hill Autonomous Zone, uma comuna em plena Seattle. Tão pouco sobre o movimento Vidas Negras Importam no Brasil, o movimento social de maior expressão durante a pandemia, o novo garimpo, o troca-troca de ministros da saúde, da situação de fechamento das escolas e dos estudantes que não tinham acesso à internet, ou à merenda. Não escrevi sobre a CPI da COVID, que descobriu um plano descarado do governo de roubar dinheiro na compra das vacinas, do novo cangaço, das queimadas do pantanal, nem dos movimentos anti-vacinas e das emergências de novas cepas. Não mencionei o fim da guerra do Afeganistão, e tantas outras coisas que aconteceram… Enquanto escrevo esse texto, vários países de primeiro mundo, que compraram os primeiros lotes de vacina, não conseguiram vacinar mais de 80% de suas populações e estão vivendo novas ondas da doença. O mundo não parou, mesmo que a minha vida tenha ficado tão pequena.

Mais de seiscentos mil brasileiros morreram de COVID. No mundo, o número ultrapassa a 5 milhões de pessoas. Nem 60% da humanidade foi vacinada e há uma disparidade gigantesca, os países mais pobres não chegam a ter 10% da população vacinada. A pandemia ainda está longe de acabar, o Reveillón está sendo cancelado em várias cidades, e é possível que não tenhamos carnaval em 2022. Eu não faço ideia de como o mundo será a partir de agora. É quase ano novo, as pessoas retomam as ruas, ainda com uma promessa de “volta à normalidade”. Será que é possível voltar mesmo? Será que podemos voltar o relógio e simplesmente desfazer o que foi dito e o que foi feito? Esquecer as mortes e o descaso?

É muito difícil captar as mudanças que nos cercam. Parece que os nossos cérebros não foram feitos para viver em um mundo em mudança.

Um feliz ano novo, e obrigado por ler!

Vencendo o Jogo da Imitação

Um dos objetivos da pesquisa em Inteligência Artificial (IA) é o desenvolvimento da IA forte (strong AI), também chamada de AGI (Inteligência Artificial Generalista), um sistema flexível, capaz de aprender a resolver qualquer tarefa.

É intuitivo. Os únicos sistemas que conhecemos como capazes de aprender somos nós mesmos. O ser humano é a única coisa capaz de dominar uma linguagem e desenvolver modelos formais do mundo ao seu redor. Uma IA forte seria um cérebro eletrônico, uma cópia de nós mesmos, e um primeiro passo seria desenvolver soluções especializadas para pequenos problemas, como o jogo de xadrez.

Apesar de ainda estamos muito longe das AGIs, a IAjá é usada em diversas aplicações. O autocompletar do celular, impressão 3D, video-games, animações e até as buscas na internet usam sistemas capazes de aprender, algoritmos que mudam e se complexificam com o tempo.

Em 1950, Alan Turing propôs no artigo “Computing Machinery and Intelligence” o “jogo da imitação” (também chamado de Teste de Turing). Para Turing, como não temos um modelo completo de como uma inteligência funciona, não é possível avaliar se uma máquina é realmente capaz de pensar. A questão para avaliar uma IA, então, não poderia ser se a máquina realmente entendesse o mundo ao seu redor, pois ela simplesmente poderia aprender apenas a responder os testes que propomos para ela, sem ter uma inteligência de verdade. Precisaríamos de um artifício, de uma situação na qual pudéssemos comparar a capacidade de uma pessoa e de uma máquina aprenderem sobre uma tarefa. A solução? Fazê-la imitar um ser humano.

O jogo é simples, um entrevistador conduz uma entrevista simultânea com duas pessoas, mas uma delas é um computador tentando se passar por um ser humano. Assim, ele ganharia o jogo se o entrevistador não conseguisse diferenciá-lo do outro entrevistado, enquanto os seres humanos deveriam colaborar para tentar fazê-lo se revelar. As pessoas poderiam, por exemplo, pedir para que um cálculo fosse feito de cabeça, já que o computador poderia fazer um cálculo exato, enquanto e o ser humano traria arredondamentos. Seria possível o computador simular erros e trejeitos que confundissem o entrevistador? Seria possível ele improvisar e mentir?

Nos primórdios da computação, se imaginava que o ser humano era a medida de inteligência. Enganá-lo, então, deveria ser uma das coisas mais difíceis de se fazer.

O Teste de Voight-Kampf

É a primeira cena do filme Blade Runner. Uma sala de arquitetura labiríntica é iluminada por uma luz azul. Mesas e computadores indicam que estamos em um escritório futurista, mas um ventilador de teto e uma densa névoa que preenche a sala destoam. Um homem convida outro para sentar à mesa, é uma entrevista para uma vaga de trabalho. Antes da conversa começar, o entrevistador liga um aparelho arcano, um braço mecânico se estende, na sua ponta uma câmera, uma lente iluminada que foca as pupilas do entrevistado como uma macabra lente vermelha. Um fole bombeia, a máquina respira, as perguntas começam.

O teste de Voight-Kampf no filme Blade Runner

“Você está num deserto, caminhando pela areia, quando você encontra uma tartaruga se arrastando na areia. Você se abaixa e a vira. A tartaruga está de costas, sua barriga cozinha no Sol forte, chutando desesperadamente para se virar, mas não ela consegue. Não sem a sua ajuda. Mas você não vai ajudá-la. Por que você não vai ajudá-la?”

O teste de Voight-Kampf foi descrito por Philip K. Dick no livro “Com o que sonham as Ovelhas Elétricas?”, e adaptado para o cinema em Blade Runner, era uma versão do Jogo da Imitação, usado para verificar se alguém é uma pessoa de verdade ou um androide replicante. Segundo a história, replicantes imitam com perfeição os seres humanos, possuindo a mesma estrutura física, mas são mais fortes, mais rápidos e mais inteligentes. Só que eles são criados em tanques de crescimento rápido e, por possuírem poucas memórias, suas reações emocionais traem a sua natureza. Eles não são tão sensíveis à crueldade quanto nós, suas reações ao estresse são diferentes, e eles não entendem a crueldade. Ao invés de expressar preocupação quanto ao sofrimento da tartaruga, um replicante simplesmente ficaria confuso com a situação.

Turing imaginava que, mesmo que não haja um limite para o poder de trabalho dos computadores (que, em teoria, podem trabalhar com infinitos números), a inteligência humana precisaria de influências “colaterais”. O princípio da dor e do prazer, o instinto, a memória, haveria algum princípio que precisaríamos programar nas máquinas para que elas pudessem aprender de forma autônoma, como nós. Computadores são ferramentas bastante simples, capazes apenas de executar um programa, seguir um conjunto de instruções criado pelo seu programador. Em teoria, eles são muito mais potentes do que as pessoas, pois podem realizar bilhões de operações por segundo sobe conjuntos de dados gigantescos, mas nós não sabemos, mesmo, até que ponto nossos programas são capazes de compreender tudo o que acontece ao nosso redor (problemas como a relação P e NP, ou o teorema da incompletude de Gödel fundamentam estas dúvidas). Esta seria uma fronteira entre o artificial e o natural, um desconhecido que é ilustrado pelo teste de Voight-Kampf.

Dessa forma, um cérebro eletrônico talvez possa simular o nosso, mas haveriam fronteiras claras. Ele seria incapaz de sentir emoções, ele seria uma inteligência puramente verbal e literal, seria dotado de uma frieza mecânica, ou de um tique nervoso. A natureza da máquina sobreporia a programação humana que nós lhe damos. Talvez ela fosse desprovida de emoções, ou incapaz de inovação, ela não poderia criar.

Há modelos de inteligências artificiais como sistemas especialistas, sistemas de descoberta de conhecimento, data mining e redes neurais, todos são formas artificiais de raciocínio que geram resultados muito interessantes, mas não se parecem em nada com pessoas.

A ficção científica está repleta de mentes artificiais e alienígenas. O Data, de Jornada nas Estrelas, era um androide curioso, mas incapaz de sentir emoções complexas. O Bishop, do filme Aliens, o Resgate, se comportava sempre de uma forma submissa às pessoas, possuindo regras complexas que sempre deveria obedecer. O Exterminador do Futuro era uma máquina de extermínio que “vestia” uma pessoa, tinha um frio esqueleto metálico movendo um corpo de carne. Mas a fronteira entre humanos e máquinas se baseia em um princípio que coloca todos seres humanos como iguais, seres pensantes capazes de se reconhecer. Sozinha no plano da racionalidade, a humanidade olha para os animais e sabe que eles não tem alma porque não conseguem pensar como nós. Sendo fundamentalmente diferente, nós reconhecemos os iguais. Nossa inteligência é a única capaz de ver a realidade em si, o único espelho do mundo. Naturalmente, a mente sempre seria capaz de se reconhecer.

Os robôs conversadores

Em 1966, provavelmente enquanto Philip K. Dick escrevia seu livro, alguns estudantes do MIT usavam o gigantesco computador IBM 7094 da universidade para interagi com um pequeníssimo programa (para os nossos padrões de hoje). A ELIZA era uma simulação de uma psicoterapeuta, para interagir com ela, ela fazia perguntas que você respondia no terminal. Baseando-se nas suas respostas, ela continuava a conversa. Algumas de suas frases incluíam:

“Falem-me mais sobre isso.”

“O que você pensa sobre <assunto>.”

“Você está muito negativo sobre isso.”

Joseph Weizenbaum, um professor do MIT, escreveu a ELIZA para aplicar os conceitos que estudava de expressões regulares e também mostrar o quão simples poderia ser construir uma interface entre homens e máquinas (você pode testar o programa aqui). Mas a longevidade da ELIZA mostra um experimento muito além do seu pressuposto, muitos alunos achavam que a conversa com o sistema era reconfortante, gostaram da experiência. Weizenbaum, já sem muita criatividade, chamou essa sensação de Efeito ELIZA.

O ELIZA em Python possui menos de 300 linhas de código, incluindo o parser para análise do que é digitado. Ele faz uma análise muito simples das frases que lhe são ditas, e suas respostas são um tanto aleatórias. Mesmo assim, esse programa bastante simples continua a surpreender estudantes de computação e psicologia pela sua capacidade de produzir empatia. A mente pode se reconhecer, mas será que é necessário que ela se reconheça para que trate o outro com empatia?

Ao contrário dos chatbots, os andróides ainda nos causam um profundo desconforto. A Eva é um rosto robô que simula expressões faciais (fonte: wikimedia).

Os Tuítes e as Infodemias

Os cucos são uma espécie bastante popular de pássaros que esconde uma história de terror: Eles são pássaros parasitários, que colocam seus ovos no ninho de outras aves. Seus filhotes, muito maiores do que os de suas vítimas, empurram seus “irmãos” para fora do ninho. O mais estranhos é que os pais adotivos continuam a alimentar o cuco. Não sei o porquê, talvez o instinto familiar é mais forte, ou se eles simplesmente não conseguem reconhecer que o bebê gigante não é seu.

Um pássaro cuco. Fonte: Wikimedia.

Quase cinquenta anos se passariam desde que o “efeito ELIZA” foi observado pela primeira vez, quando, na década de 2010, um movimento chamado “Primavera Árabe” começava a desafiar cientistas sociais e teóricos políticos. Mohamed Bouazizi era um comerciante ambulante da cidade de Ben Arous, na Tunísia, até que teve os seus bens confiscados pela polícia. Ele resolveu ir à prefeitura reclamar, e, quando não foi atendido, ateou fogo a si mesmo. Os vídeos rapidamente circularam, despertando o clamor popular. Em apenas quatro semanas de protestos o governo caiu,e isso despertou uma série de protestos pelo Oriente Médio. Como uma cidade com menos de cem mil habitantes seria o berço de um movimento que se espalharia por uma dúzia de outros países? A única coisa clara era uma nova tecnologia nascente no cerne dos protestos: as redes sociais.

A Primavera Árabe abriu a década na qual as redes sociais se tornaram centrais nas nossas vidas políticas. Em 2014, o Facebook implementou uma notificação de “votei”, que permitia uma pessoa dizer que participou das eleições, já que nos EUA não é obrigatório votar. Segundo Zuckberg, isso incentivaria as pessoas a votar, aumentaria a participação democrática. Era um vislumbre de como a internet se tornaria o centro da nossa vida política. As pessoas estavam usando as redes para se comunicar mais, trocando informações em um nível nunca visto.

Em 2016, a campanha pelo Brexit trouxe à tona um lado inesperado na política das redes sociais. Sistemas de profiling em larga escala, conduzidos por empresas como a Cambridge Analytica e AggregateIQ, foram essenciais no “marketing de precisão” que conseguiu trazer 3 milhões de novos eleitores para o referendo (se compararmos os eleitores que participaram do referendo com os da eleição de 2014). O “algoritmo” parecia domar a potencialidade explosiva das redes sociais, as massas novamente se mostravam influenciáveis, e um novo termo surgia: fake news disparadas por targeted marketing. Notícias falsas como propaganda direcionada, elas falam exatamente o que você quer ouvir; aquilo que vai te causar uma forte reação. Estas notícias eram criadas por grupos de marketing, pessoas treinadas em buscar formas de afetar tanto a mente, quanto o coração do público.

Nas eleições de 2018, os grupos de whatsapp tomaram a proeminência dessas redes de targeted marketing. O sistema começava, pelo menos no Brasil, a caminhar por suas próprias pernas, e qualquer ponto de vista pode ser sustentado na torrente informacional.. Mensagens das mais bizarras espalham o pânico e a desinformação, formando poderosos blocos políticos. Quanto mais visceral, maior o alcance. Isso não é de se surpreender, vendo a visibilidade que grupos anti-vacinas e terraplanistas ganharam. As pessoas se tornando tão seletivas com as notícias que leem que alguns chegaram a teorizar que vivemos em uma era da pós-verdade, onde há tanta informação que fica difícil, senão quase impossível, termos um entendimento comum do que existe e o que não existe. Enquanto escrevo este texto, um grande pânico se espalha sobre o vírus nCov-19 que se alastra pela China, tão grande que a Organização Mundial de Saúde já a chama de “infodemia”.

E um dos agentes principais dessa era são os bots, aqueles nossos contatos nas redes sociais que espalham as suas mensagens, seja repassando-as, seja ativamente invadindo outros espaços, como caixas de comentários. Essa segunda geração dos chatbots são programas que habitam as redes sociais, interagindo com as pessoas para oferecer informações e serviços, enquanto coletam dados dos usuários. Se você controla uma rede de bots, tem acesso a todas as pessoas indiretamente conectados à eles. Mas nem todos os bots são programas, muitos são pessoas que divulgam notícias ou desinformação, fazem ativismo e até atacam outros, voluntariamente, ou como um trabalho (content farms e click farms são apenas alguns exemplos de negócios construídos sobre esta lógica).

Sejam programas avançados ou simplesmente trabalhadores ou pessoas muito engajadas, os bots se tornaram uma parte essencial da vida política da rede, são o centro da viralidade. Isso se tornou um problema, já que a tecnologia-chave desse imenso sistema social da internet é a medida da relevância do conteúdo. Palavras são pesadas pelo quanto elas são usadas, pelo quão único e importante é o seu significado, e pelo quanto elas estão sendo citadas no momento pelos usuários. Bots podem alterar a relevância de uma mensagem, que complementa a sua viralidade. A chave não é o conhecimento, mas a emoção. Se as mensagens dizem o que queremos ouvir, se elas reforçam nossas ideias, se elas parecem nos ameaçar, nós as repassamos ou reagimos a ela (algo equivalente a repassá-la). Nós simplesmente não temos tempo ou interesse em checar as fontes de tudo que recebemos, ainda mais se a mensagem nos parece algo urgente. E assim como as vítimas dos cucos, quando recebemos a informação que nos agrada, cuidamos dela com muito esmero. Todos nós temos uma reputação a zelar, e nossas opiniões, mesmo que não tenham lá muito fundamento, não podem ser publicamente ridicularizadas.

Neste mundo de bots, pessoas e programas são indistinguíveis, e suas redes organizam, informalmente, grupos e subculturas. Turing esperava que os computadores poderiam se passar por seres humanos, mas precisariam de uma grande habilidade para nos enganar. A verdade é que muitas vezes nós queremos ser enganados. Parece que o jogo da imitação foi solucionado.