Economia Gig, Toyotismo e Telecom

Gig: 1. Performance única de um músico ou grupo musical. 2. Uma carruagem puxada por apenas um cavalo. 3. Um gigabyte (dicionário de Cambridge).

Gig Economy – economia freelance, economia de contratos, economia do trabalho temporário, economia terceirizada.

Na década de 1970, uma revolução se iniciava no Japão. Uma de suas grandes companhias, a Toyota, desenvolvia uma metodologia de produção inovadora. O Toyotismo, como ficou conhecida, visava flexibilizar a produção, com trabalhadores organizados em times responsáveis por atender diferentes demandas da produção.

Quadro organizacional “lean production” da Scanfil

A administração científica entrava em uma nova era, uma na qual o trabalhador não era apenas uma parte de uma linha de produção, mas uma máquina flexível capaz de adotar várias funções. Sua produtividade era limitada pelo seu envolvimento, sua fidelidade à empresa, sua habilidade e sua motivação para a tarefa, e não só por prêmios e punições.

Kaizen, a busca constante pela melhoria, e os quadros Kanbam, que determinavam as tarefas rotativas para a semana, são os grandes nomes que apareceram para os funcionários. Já para a empresa, havia a nova necessidade de promover a alta competitividade através da eficiência da produção, ajustando-se às projeções das flutuações dos compradores e fornecedores.

Do ponto de vista financeiro, isso permite um enxugamento da máquina, gerando cortes de gastos na linha de produção, no controle de estoques e até no transporte de bens (ou seja, a enxuga-se mais os custos da produção). Esse tremendo esforço organizativo só pode vir a ser, a meu ver, a partir de uma tecnologia específica: uma rede de telecomunicações bem desenvolvida que permite uma comunicação entre a empresa e seus clientes de forma barata e com rapidez

O telégrafo começou a ser comercializado em 1837. No século que se passaria, as linhas telegráficas se multiplicariam até se transformarem em uma rede de comunicação global, ligando cidades, estados e continentes (o primeiro cabo para comunicação transoceânica foi colocado em 1858 entre EUA e Inglaterra). Eventualmente o telefone (patenteado em 1876) permitiu ligar para pessoas individualmente. É difícil conceber a quantidade de informações que fluíam pelo mundo já em 1970, mas se passou a cobrar de caractere escrito para mês de uso.

Linhas de telégrafo nos EUA em 1853

O consumerismo revolucionou os produtos, chegou a deixar a marca mais importante do que a roupa. Gerou novas bugigangas que se se tornavam uma necessidade para diferentes segmentos. O toyotismo, por outro lado, teria feito isso com o trabalho, transformando a produção em uma coisa mais importante do que a função. O trabalhador se torna capital humano. O trabalho se torna valioso por si, pelo que ele faz socialmente. Esta nova relação exige que o indivíduo que ocupe qualquer posto seja produtivo e motivado, ou outros melhores poderão vir.

O toyotismo e seus filhos (just in time, lean production, metodologias de desenvolvimento ágil*) se tornaram um dos principais meios de revigoração da economia. De certa forma, são eles que permitem a gerência para o trabalho criativo de pesquisa e desenvolvimento. Domenico de Masi, bastante famoso aqui no Brasil**, lançou um livro onde defendia o Ócio Criativo, afirmando que o trabalho criativo tinha se tornado tão importante que o lazer, o momento de se repensar, tinha que ser integrado nos ambientes empresariais.

Pode parecer uma simples brincadeira com as palavras, mas o engenheiro, o designer, não mais soluciona problemas, ele produz soluções. Marc Brunel, um grande engenheiro do século XIX, inventou o escudo de túneis, um método para escavação mais segura, sozinho, e só conseguiu ganhar algum dinheiro com sua invenção enviando cartas para toda a alta sociedade inglesa pedindo para fundos para terminar de construir o túnel do Tâmisa. Pense agora na política da Google de dar 20% de tempo livre para seus engenheiros empregarem nos projetos que quiserem (e que gerou produtos como o Google Earth). Não há uma inversão? Ser pago por ter inventado uma solução, ser pago simplesmente para inventar (ou para ser uma reserva inventiva, mas estou divagando).

Esse modelo é um gigantesco investimento. E os capitalistas, continuamente procurando como aumentar a liquidez de seu dinheiro, encontraram uma forma de melhorá-lo e expandi-lo.

Vamos voltar, agora, para as redes de comunicação. Compare a rede telefônica com a internet. O telefone nos deu o telemarketing, as insistentes ligações das empresas para nos vender alguma coisa. A internet nos deu o fitbit, aparelho que comunica passivamente cada passo que uma pessoa dá no seu dia! Nós informamos à empresa o que fazemos. E o custo dessa comunicação é desprezível.

Também não nos importamos de vender nossos dados por serviços. Como diz o ditado, “de graça até uma injeção na testa”, e de graça é aquilo pelo que a gente não sabe que está pagando.

Acho que foi pelo próprio desenvolvimento das redes que faz o toyotismo dar luz a Gig Economy, uma nova (e ainda pouco organizada) metodologia organizacional que já está em operação e girando capitais financeiros bilionários. O foco dela é uma ainda maior flexibilização das forças de produção e das relações de trabalho.

Um aviso antes de continuarmos, Gig Economy convive com o Toyotismo, com o Fordismo e com outras metodologias de produção. O que é importante apontar é o seu nascimento e sua provável ascensão à hegemonia, como meio principal de nós trabalharmos.

Agora financiamento é visto como um ponto central. Não mais se paga, mas se investe (financeiramente falando, dando dinheiro para ter retorno), e acredito que isso é bastante visível no fenômeno das startups, empresas de desenvolvimento tecnológico que contam com alto grau de capital privado para lançar produtos novos. Como no caso do Google, Facebook, Oculus Rift, Instagram, e outras, estas companhias trabalham com altos investimentos, produzindo preciosas patentes e garantindo reservas de mercado. Ser comprado por uma gigante do setor não é uma perda, um sinal de falência, mas um sucesso dos empreendedores.

O próprio desenvolvimento muitas vezes é visto como um concurso, concurso de marcas, bug-hunt e programadores freelancer cumprem papéis vitais para várias companhias. De novo, somente com uma infraestrutura tão grande como a internet para que os investidores possam trabalhar com tantos contatos e tantas informações.

Vamos olhar a cereja do bolo. A Über, empresa de transportes por aplicativo, foi fundada em 2009 e alcançou um valor de 69 bilhões de dólares em 2017, superando as montadoras de carro da GM, Ford, Nissan e da Fiat! Tudo isso sem ser dona de nenhum veículo.

Vocês já devem saber como ela funciona, rastreando motoristas e usuários por GPS, ela oferece um serviço de transporte (urgh, caronas pagas), estipulando o preço da tarifa e cobrando 25% sobre o pago. Fazendo a intermediação entre motoristas independentes e clientes, não acho que seria uma grosseria dizer que a Über seja uma companhia que é um mercado de motoristas.

As relações de trabalho da Über são controversas, mas são o seu carro-chefe. A empresa garante que seus trabalhadores não são funcionários, mas podem entrar no sistema quando bem entendem, e não custando nem um centavo trabalhista à empresa. Nas suas propagandas, ela afirma que é uma plataforma para qualquer um ganhar dinheiro, seja você um trabalhador de uma empresa precisando dinheiro para as compras de Natal (de novo o consumerismo), seja você um desempregado que irá alugar um carro para poder pagar suas contas.

O futuro da überização ainda é incerto. Recentemente, uma ação trabalhista na União Europeia classificou a empresa como uma de transportes (#1), exigindo que trate os seus motoristas como funcionários, mas este modelo tem inspirado tantas outras empresas, e com ondas legislativas pela flexibilização das leis trabalhistas (ver Brasil, Argentina e França neste ano), é difícil acreditar que ela seja apenas uma moda passageira.

A gerência interna da empresa também é disruptiva e controversa. Usando o mesmo sistema de avaliação que categoriza seus trabalhadores de uma a cinco estrelas, a administração dos funcionários da Über é controversa, gerando uma espécie de poder por pontuação que fica acima dos códigos de conduta e regras. Recomendo a leitura da carta de Susan Fowler, uma engenheira que trabalhou na companhia e, entre descaso e assédios morais e sexuais, ela pediu demissão após um ano de trabalho (#2).

O toyotismo tinha como foco o trabalho em pequenas equipes e na cooperação. Já a Gig Economy pode se dar ao luxo de se focar no indivíduo, de separar suas horas de trabalho e contabilizar sua produção com uma precisão de centésimos de segundo e a partir da satisfação de seus clientes. Ela trabalha com massas, muito mais estáveis do que as equipes, e com relações cada vez mais efêmeras, mas constantes, e mantém a ideia do toyotismo de trabalhar com o capital humano, seus desejos e suas motivações. Ela tem informações muito mais detalhadas sobre cada trabalhador e cada consumidor e utiliza um marketing de precisão. Ela não negocia seus contratos com indivíduos, mas os oferece em mercados.

Os boias-frias, trabalhadores temporários da agricultura brasileira, tinham emprego de acordo com a estação. Carregados em caminhões, cruzavam o Brasil para trabalhar nas colheitas por parcos pagamentos. Assim como eles, o trabalhador urbano moderno pode ser empregado apenas quando há serviço para ser feito. As máquinas informam quando. Assim como os ruralistas, a Gig Economy não precisa mais manter vínculos empregatícios, só cuidar com as sazonalidades da demanda.

Trabalhador Boia-fria no canavial, foto de Cícero R. C. Omena

A maioria das pessoas trabalha para se sustentar, para ter uma vida digna e pagar suas contas. A existência do emprego estável e de ambientes empresariais, com sua própria cultura, foi um marco do século XX, mas estamos numa nova onda que é uma mudança drástica nas relações de trabalho, precarizando, nos tornando incertos quanto a nossa renda mensal, a nossa empregabilidade e ao nosso futuro. Nossa relação com o dinheiro, hoje consumerista, continua a mudar. A Gig Economy promete aquele dinheirinho extra se espremermos umas horinhas a mais de trabalho por dia, mas se ela é tão promissora, será que todo o nosso dinheiro, inclusive o que usamos para pagar coisas vitais, como a nossa moradia, saúde e educação?

O que será que virá destas mudanças? Será que até mesmo os trabalhos especializados e os postos estratégicos, que hoje ainda vicejam no toyotismo, serão überizados? Alguns setores continuarão a funcionar sobre as lógicas anteriores, criando ainda mais subdivisões do trabalho bom e ruim?

Difícil saber, mas muitos outros movimentos estão surgindo com estas mudanças. Renda básica, microcrédito, reforma urbana, cooperativas e coworking, crowdfunding, produção distribuída, liquefação das relações, são apenas alguns dos termos sobre os quais vamos ter que falar.

*estas últimas na área de desenvolvimento de software, mas já transitaram para outros setores como o design e a arquitetura.

** Talvez a obra dele não seja seminal, mas acho que foi um dos marcos aqui no Brasil.

Algumas bibliografias

https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/gig

http://professormarcianodantas.blogspot.com.br/2015/02/os-boias-frias-e-as-condicoes-de.htmlhttp://www.bbc.com/news/business-38930048

#1 https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-12-20/uber-suffers-setback-at-top-eu-court-in-clash-with-cabbies

#2 https://www.susanjfowler.com/blog/2017/2/19/reflecting-on-one-very-strange-year-at-uber

MASI, Domenico. O Ócio Criativo. Editora Sextante, São Paulo, 2000.

ALVES, Giovanni. Toyotismo, novas qualificações e empregabilidade. Rede de Estudos do Trabalho, 2014.

CIMBALISTA, Silmara. Toyotismo e o processo de motivação e de incentivo à inovação nas organizações. ANÁLISE CONJUNTURAL, vol 24. 2002

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