Dizem que quando nós observamos qualquer coisa, sempre tomamos um de dois juízos: Sintético e Analítico.
Vamos ao primeiro, o juízo sintético. Ele é relacionar e generalizar, agrupar em conjuntos, dizer que uma coisa e outra é, de certo modo, a mesma coisa.
Por exemplo, a foto abaixo é de uma obra de arte famosa, One and Three Chair, uma e três cadeiras, de Joseph Kosuth. É uma cadeira colocada ao lado de sua foto e da definição do dicionário de cadeira. E o mais interessante, a obra nem mesmo precisa usar os mesmos materiais, podem ser arrumados in loco! Segundo o autor, a instalação é constante mesmo que seus objetos mudem.
Neste caso, ao olhar a obra, eu faço, efetivamente, um juízo sintético, preciso reconhecer que a foto é da cadeira e a definição do dicionário é tudo uma forma de descrevê-la. Talvez se referindo a diferença de significado, significante e objeto, talvez uma exploração da ideia platônica de forma, há muitas maneiras de entendê-la, mas o fazemos pela mesma operação, agrupando os três elementos da obra como se referindo a uma mesma coisa.
O segundo juízo é o analítico. É detalhar, apontar as diferenças, separar um conjunto em outros menores. De certa forma, é dizer que aquilo que observamos é composto de mais de um elemento.
Se olharmos para a One and Three Chairs de novo, vamos ver que também fazemos análises ao olhar para ela. Dizer o óbvio, que na obra acima temos uma cadeira real, uma definição de dicionário e uma foto, é analisar. Apontar que a obra usa o francês como língua é um juízo analítico, apontar que a foto nem sempre foi tirada no mesmo lugar da instalação (como na foto abaixo), que as cadeiras são diferentes, que alguém poderia usar uma cadeira de três pernas, também.
Vamos para uma área completamente diferente, um dos melhores exemplos de como os juízos são usados para criar o conhecimento está na classificação dos animais, a organização dos seres vivos em famílias formadas pelas forças evolutivas. Esse esforço científico de mais de duzentos anos é, basicamente, composto de apontamentos que dizem que os animais são próximos ou que são distantes. Claro, usando uma série de recursos e registros, incluindo genéticos e fósseis.
Ao coletar as diferentes espécies de tentilhões nas ilhas galápagos, Darwin notou que os pássaros de diferentes regiões apresentavam formatos de bicos diferentes. Vendo as similaridades nos comportamentos deles, disse que eles podiam ser de espécies diferentes, mas tinham um ancestral comum, que chegou às ilhas. Seus descendentes, os tentilhões coletados, teriam se tornado diferentes por especialização, a seleção natural teria transformado os seus corpos em formas mais adaptadas.
Outro exemplo posterior é a classificação de ordens dos dinossauros. Dinossauros são tradicionalmente divididos em duas ordens, Saurisquia e Ornitísquia, separadas de acordo com os ossos dos quadris, a primeira próxima aos quadris dos répteis, e a outra dos pássaros.
Só que hoje, acredita-se que os pássaros, na verdade, são descendentes da sub-ordem dos Terópodes, dinossauros carnívoros Saurísquios! Os quadris Ornistíquios seriam uma evolução convergente com a dos pássaros, e olhando as coleções de fósseis, podemos dizer que os paleontólogos de antigamente foram um pouco precipitados em dizer que as bacias eram iguais. Isso é bastante comum nesse ramo, e a Vertebrate Paleontology Society atésugere que passemos a diferenciar as ordens pelo bico ósseo que os Ornitísquios possuem.
Podemos ver que nada pode ser reduzido a um único juízo, isso seria uma simplificação exagerada. Eventualmente, novos fatos, novas descobertas e novas informações fazem com que novos juízos tenham que ser tomados sobre conhecimentos antigos. Todo juízo se articula sobre um juízo anterior, sínteses e as análises acabam se misturando e se complementando. Afinal dizer que os ossos das duas ordens eram diferentes, uma parecendo os ossos de répteis e a outra de pássaros, é uma análise que depende de uma síntese anterior que juntou os fósseis em ordens, e segue uma nova análise, da evolução dos pássaros, e a síntese anterior começa a se contradizer com a nova, e blablablá!
Esses conceitos que podem ser usados criar uma historicidade do conhecimento, mas uma bastante arbitrária e que não é muito mais interessante do que pesquisar os grandes conceitos e as grandes polêmicas na ciência/filosofia de cada era. Só que eles tem um outro poder. Muitos pensadores apostam nos dois juízos como uma forma de resolver uma profunda questão: por que nós aprendemos de formas diferentes.
Se partirmos da premissa de que aprendemos sobre o mundo a partir daquilo que vemos e experienciamos (premissa empírica*), seria olhando diferentes cadeiras que nós aprendemos o que é uma cadeira, seria olhando os animais que descobrimos a sua variedade e classificação. Uma sucessão de instâncias diferentes entre si nos revelariam os conceitos e seus agrupamentos em classes.
Porém, se tudo o que nós conhecemos provém do que nós vemos e experienciamos e aprendemos com os outros, por que as pessoas tomam conclusões diferentes? O conhecimento não deveria ser uma linha reta? Não bastaria uma série de estímulos idênticos para termos pessoas que pensam e veem o mundo de forma igual?
Há uma boa dose de arbitrariedade na vivência e na observação. Se, pelo menos, agrupamos e separamos o que nós enxergamos de formas diferentes, podemos concluir que as pessoas são diferentes porque pensam de uma forma diferente e este é o processo de diferenciação. Os juízos complementam o livre-arbítrio, uma forma ativa de escolher, a partir do que se conhece, o que queremos. Eles seriam uma forma passiva, que reconhece e organiza o mundo para exercermos escolhas.
Segundo essa proposta, não há uma “granularidade” para a experiência, uma “unidade” de aprendizagem. Se dois irmãos gêmeos quebrarem um prato e receberem o mesmo xingão de sua mãe, talvez os dois tirem lições bem diferentes da situação, ou num deles nem perceba isso como uma experiência válida. É por isso que mesmo pessoas com histórias similares podem ser bem diferentes, e por isso que podemos até afirmar que nossas personalidades são diferentes. Nem mesmo uma topada com o seu dedo no pé da mesa poderia ser dita como um “grão de experiência”.
Isso não significa que não há erros, que não hajam percepções erradas, raciocínio falho, lógica ruim. Mas significa que mesmo que hajam erros, também podem haver vários certos, cada um com uma relevância própria.
Eu gostaria de fazer uma segunda argumentação aqui. Quero apontar que os juízos não só nos separam, mas também nos conectam.
Voltando à biologia, o desenvolvimento da teoria da evolução não foi um brilhantismo isolado, mas foi uma época em que a academia europeia enfrentava um dilema. Acreditava-se que a natureza era uma realidade imutável, todas as espécies teriam sido criadas no início dos tempos iguais. Só que geólogos e biólogos estavam encontrando registros que desafiavam a ideia.
Lamarck, que nasceu uns cinquenta anos antes de Darwin, foi um biólogo que viajou pela Europa e, visitando vários jardins botânicos, museus e coleções, criou uma teoria de que os animais poderiam se modificar por herança de características. As pessoas já sabiam que poderiam fazer seleção artificial, criar raças de animais, mas não tinham ideia de que isso poderia ocorrer na natureza. Étienne Saint-Hilaire e Curvier tiveram um longo sobre essa possibilidade, anos antes da publicação da “Origem das Espécies”. Anos depois, Russell Wallace foi um biólogo contemporâneo que trabalhava na Malásia, que chegou às mesmas conclusões sobre evolução por meio da especiação por seleção natural. Foi uma carta sua que levou Darwin a decidir publicar seu livro.
Todos os biólogos articulavam seus juízos com uma premissa, a da imutabilidade da natureza. Seus juízos partiam dessa ideia, esse debate “a priori”, que estava em voga. E isso não acontece só na ciência, mas na cultura e na política.
Algumas ideias que se espalham pelas sociedades, costumam ter uma solidez maior do que os fatos. O Ethos, o caráter de cada tempo, há alguma coisa que compartilhamos pelos nossos grupos. Conceitos, valores, sentimentos, até que ponto podemos dizer que há ideias em comum, que trocamos e operamos em conjunto?
A academia (o mundo das universidades) é um espaço criado justamente para isso, onde há corpos de conhecimentos compartilhados que são apropriados por pesquisadores individuais e discutidos em conjunto. Por isso há o mainstream e as contracorrentes, as implicâncias com o “cientificismo” e o academicismo tão comuns, pois quem tem relevância é quem aparece como o representante das linhas de pesquisa em voga, e é isso que há de tão valioso a ponto das academias terem sido criadas em diferentes momentos históricos por diferentes povos.
Acho que uma dinâmica similar à acadêmica acontece na sociedade, linhas “ideológicas” e comportamentais disputam nesse grande campo cultural. Só que aqui há uma diferença fundamental. Na cultura teremos que parar de pensar em “ideia” como um “conceito”, como um objeto mental fechado. Os juízos também serão operados sobre emoções e ações, que fazem parte das ideias culturais.
Assim, um juízo meu ao ver o One and Three chairs pode ser uma articulação na minha ideia de arte, criando uma “nova arte” contemporânea, menos dependente da técnica. Pode ser, também, uma sensação de desgosto, eu ver uma não-arte na tela, posso até me sentir ofendido por uma coisa tão besta sendo exibida em uma galeria de arte. Pode me despertar sentimentos de beleza, de desgosto ou até mesmo indiferença.
Sim, é uma expansão meio audaciosa do conceito, mas juízos não se dão apenas com categorias e conceitos, com ideias bem formadas, mas são articulados com sentimentos e emoções, e valores e morais.
Neste sentido, acredito que os juízos são importantes para a nossa organização social.
Durante a Copa do Mundo, eu torci várias vezes pelo Brasil. As pessoas que estavam comigo também. Formávamos um lado, que mesmo difuso envolvia uma síntese comum. Uma síntese – torcemos por esse time, queremos sua vitória – estamos juntos. No gol todos vibram, não importa quem está do lado. O vínculo que formamos naquele momento? Torcemos para o mesmo time.
Possivelmente os movimentos artísticos, apesar de estarem embasados em percepções e teorias da estética, também são assim. Joseph Kosuth se considerava um artista conceitual, um descendente dos trabalhos de Marcel Duchamp, esse, por sua vez, associado ao Dadaísmo. Se os dois se encontraram em vida, será que não se deram um high-five para o desgosto dos artistas com um senso mais clássico?
Na política, a divisão de esquerda e direita acaba agrupando uma série de ideias contraditórias e antagônicas em um mesmo “lado”. Enquanto muita gente critica que as pessoas se movem “em manadas” e não são independentes, eu acho isso bastante estratégico. Na democracia do voto, qualquer proposta colocada acaba gerando apenas dois lados (e meio), um pelo sim, um pelo não, e o não-voto que pode ser usado de várias maneiras, mas sempre dentro desta estratégia de conseguir uma maioria. Mesmo que sejam grupos incoerentes, esquerda e direita se mobilizam em uma união, algumas vezes por motivos quase irracionais, conseguem montar a maioria.
Seriam os lados políticos gerados por um juízo sintético?
O pesquisador estadunidense Johnatan Haidt afirma, numa TED talk [1], que a diferença entre a direita e a esquerda é um fundamento moral em cada uma delas. Segundo sua pesquisa, haveriam cinco fundamentos para a moralidade, sendo eles: Cuidado, Reciprocidade, Lealdade, Autoridade e Pureza.
Para ele, conservadores se separam dos liberals (os progressistas) por que relevam muito mais autoridade e pureza como fundamentos morais.
O argumento do Haidt é apenas um dos vários que tentam justificar o espectro político, e eu não acho que ele é final, mas é um exemplo do que estou tentando argumentar. A sociedade forma dois grandes grupos que, se incoerentes, agem em conjunto e se protegem não por uma filiação explícita, mas implícita, por seus juízos ao analisar a sociedade. As mesmas operações que nos individualizam, nos fazem se mover em manadas. Repido que podem haver vários certos, várias maneiras de se entender o mesmo fenômeno de agrupamento.
Nestes últimos cinco anos de Brasil trouxeram um prolongado debate político, no qual as pessoas tiveram que tomar lados e apresentar argumentações e narrativas para suas percepções políticas. E eu observei que há, nesta disputa, uma ideia bastante impactante, a de que o pensamento é determinístico.
O maior exemplo é um comentário que li num video político do youtube. Um apoiador escrevia “quem é racional chegará a essas mesmas conclusões”. Pessoas racionais devem chegar às mesmas conclusões que eu, as outras, aquelas que não concordam, não são racionais.
Penso, logo concluo o mesmo? Sinto o mesmo? Ajo da mesma forma? A razão é determinística? Segundo nosso modelo de juízos, não individualmente, mas separadamente. O pensamento é relacional, histórico, as ideias são articuladas entre si, e as conclusões são variadas. Neste caso, há ideias bem articuladas e com uma ampla base argumentativa, e há aquelas que não são, mas não há um determinismo empírico, um modo de pensar que é o único correto (a partir de um conjunto de provas).
Como os juízos são tão diversos e independentes, pensar igual é uma forma de identificar o igual, o que podemos ter relações e esperar que hajam como nós. Tradições estão profundamente relacionadas aos nossos modos de pensar. Repensar, mudar, requer energia, esforço, dedicação e (uma certa) humilhação (de se dobrar a e ouvir outros pontos de vista). É algo muito similar ao que acontece materialmente. Quando adotamos um conjunto de tenologias, temos que construir uma infraestrutura para suportá-las, e dificultamos alternativas. Os geradores nucleares resfriados com água pesada podem ser substituídos por inúmeras outras tecnologias, como reatores resfriados a gás ou reatores nucleares de tório, mas isso exigiria investimentos e a construção de uma infraestrutura que não existe, um custo a ser arcado[2].
Não é difícil ouvir uma opinião diferente da nossa, explorar as possibilidades alternativas àquilo que conhecemos? É um exercício que chega a doer.
E até que ponto nossos juízos seriam responsáveis por nos singularizar, ou nos agrupar? Haveria uma fronteira que podemos identificar entre o eu e a ideia? Até que ponto as nossas diferenças não são uma questão de uma simples preferência por primitivas morais em nossos cérebros? Quem sabe um gene, uma única causa por trás de nossas opiniões?
Não sei dizer.
* Escrevi o texto a partir de um ponto de vista empirista, que diz que o conhecimento provém do exterior, que é formado pelas experiências e observações do indivíduo. Acho que a melhor forma de entender a empiria é pensar no bebê, que nasce praticamente incapaz de usar o seu próprio corpo, e que vai aprendendo lentamente a mover seu corpo e usar sua mente (dê uma pesquisada sobre a experiência do objeto permanente).
Alguma Biografia:
Acho que o formato acadêmico dos textos estava bem chato, então estou tentando mudar um pouco o formato dessa vez. Esta é a biografia:
[1] Jonathan Haidt. On The Moral Mind. Palestra TED em: https://www.ted.com/talks/jonathan_haidt_on_the_moral_mind
[2] Rápida pesquisa no Google me deram alguns resultados em inglês bastante preocupados em comparar os tipos diferentes de reatores nucleares:
– https://whatisnuclear.com/msr.html
[3] Uma boa inspiração pra este ensaio foi o texto do Freud, “Totem e Tabú”, publicado em . Lá ele tenta apontar o horror ao incesto como uma causa fundamental no desenvolvimento das culturas e tradições. Outras incluem:
O livro do Immanuel Kant, “Crítica da Razão Pura”, mas não o li inteiro e nem sei se entendi direito.
A tese de doutorado do Ítalo Dutra “Mapas conceituais no acompanhamento dos processos de conceituação”, no PGIE da UFRGS de 2006.
E a palestra da Judith Butler “The Human Condition” em Barcelona. Assisti no youtube, então não sei o ano…