Informar-se num mundo de Fake News

Fake News, um termo em inglês para discutirmos a grande polêmica do momento: as notícias falsas.

Apesar da controvérsia existir desde os primórdios da sociedade, parece que ela tomou uma outra dimensão por causa das redes sociais. Agora, qualquer um tem a capacidade não só de criar, mas de espalhar boatos globalmente, e o poder da imprensa tradicional, com os seus editores que planejavam e construíam as revistas e jornais divididas para diferentes públicos-alvo, foi subvertido.

De repente, uma das medidas mais importantes para a comunicação se tornou a viralidade, o quão “contagiante” é uma mensagem, qual o seu potencial de se propagar. Na abundância de informações nos repositórios da internet, produzidas individualmente pelos seus usuários, organizadas e ofertadas em feeds e queries, monetizadas por meio de propagandas, criamos um mundo novo sem as amarras dos controles editoriais, diversificamos ainda mais os grupos de nossa cultura, e a “hegemonia” – o que a sociedade considera como conhecimento certo, como valores necessários, e como costumes comuns – está sendo transformada radicalmente.

E chegamos no momento em que estas plataformas sociais começam a ser inspecionadas e regulamentadas pelas grandes instituições. O Facebook, a maior plataforma social da internet (e suas filiadas Whatsapp e Instagram) está sofrendo críticas de personalidades exigindo mudanças, e ações que ameaçam o seu modelo de negócio. Zuckerberg e seus engenheiros devem estar quebrando a cabeça para resolver as tais Fake News. Os legisladores, lobbistas e ativistas também.

Tirina do Mundo Avesso sobre a crise de informação, visite a página do autor, Carlos Ruas, em https://www.umsabadoqualquer.com/

Boatos e fofocas sempre existiram, e os próprios jornais também criam narrativas e manipulam a informação de acordo com suas agendas. Mas, por trás das Fake News, há uma questão bem humana. Se lemos uma notícia, como decidimos se ela é verdadeira ou falsa? E se ela contradiz o que acreditamos, o que fazer? Repensamos nossas crenças, ou ignoramos o novo?

Informar-se e educar-se são duas faces do mesmo processo.

A tirinha acima ilustra um ponto de vista bastante comum. “Antes”, numa era de escassez de informações, as fontes poucas e controladas. O risco, como dá pra se notar pelo fundo desértico, era morrer de sede. Hoje, o excesso de informação inverte a situação. Ninguém parece ter risco de não acessar a informação, mas as pessoas ficaram à deriva, boiando sem chão num mar contraditório e inseguro.

É interessante como o professor é representado. Vestindo um jaleco branco, ele controla o acesso à informação na era do “antes”, e na era do “depois” é quem tem altura suficiente para não precisar nadar no mar de informações. O titã do conhecimento se vê impotente enquanto um de seus alunos “descobre” que a Terra é plana.

Informar é um processo irmão de ensinar, e não é a toa que colocamos a culpa de quase todos nossos problemas na educação. Mas “antes” era como na tirinha? Houve uma época em que o professor sabia tudo sobre um assunto e apresentava os conteúdos de forma palatável para os seus alunos?

Talvez, mas este não era um passado romântico e agradável. Qualquer um que já tentou dar uma aula para crianças e adolescentes sabe como as turmas tendem a ser heterogêneas, sabe que seus esforços terão resultados bem diferentes para cada aluno. Não só a atenção e o interesse que costumam ser relevantes na hora de montar as turmas do fundão e os CDFs, mas o próprio conhecimento que eles trazem e as suas relações pessoais. E quanto aos professores, vá a uma reunião pedagógica, e tente anotar quantas vezes você vai escutar que os alunos não sabem porque não tiveram boas bases, porque tem deficiências dos anos anteriores. Ensinar nunca foi um processo fácil, e vários alunos já tiraram boas notas em provas sobre conteúdos que esquecerão ou que passarão a duvidar alguns anos depois. O professor, por mais que saiba sobre um assunto, ainda trabalha com a mesma matéria-prima que a imprensa, a informação, aquilo que faz os outros se informarem.

O nosso sistema de ensino acredita ser capaz de fazer com que uma turma de dezenas de pessoas “acredite” que há plantas sem frutas, que peixes e mamíferos são cordados, que a bháskara realmente encontra os valores possíveis de x numa equação? Um professor explicando deveria bastar? Ler no jornal basta para aprender sobre um fato?

Temos uma cultura cientificista, achamos que nós acreditamos no que é científico, que foi embasado em fatos, observações e deduções lógicas puras. Aquilo que não tem estas bases é firula, gosto ou delírio.Isso chega a tal ponto que, muitas vezes, aquele que é incapaz de concordar com nossas certezas ou não as compreende ou está mal-intencionado.

Mas se eu nunca vi todos os tipos diferentes de plantas, como posso saber que os livros estão certos? Por mais que os peixes tenham espinhas, jamais imaginaria que eles fazem parte do mesmo filo que nós, os mamíferos, uma forma taxonômica tão abstrata que simplesmente assumo como correta. A própria dedução da bháskara foi algo que eu não vi numa sala de aula, só alguns anos depois de ter me formado no ensino médio, sendo que ela foi essencial para que eu saísse da escola.

Acreditamos que acreditamos no que é certo. Mas é isso mesmo? As informações e o nosso conhecimento estão além da empiria e da transmissão verbal, elas passam também por outros critérios, dentre os quais a relevância e a credibilidade estão tomando um papel central.

Detalhe do afresco A Escola de Atenas, de Rafael. No meio dele, o velhoPlatão (esq) debate com Aristóteles (dir). Fonte: Wikimedia

A Arte Retórica é um livro escrito por Aristóteles no século IV antes de Cristo. Junto com os diálogos de Platão serviu, por muitos séculos, como base para o entendimento da retórica, do discurso e do debate no mundo europeu.

Lá naquela época, o autor identificava três formas como as pessoas são convencidas de um argumento.

A primeira forma é chamada de Logos, os argumentos e a racionalidade. Este seria o discurso estruturado, a apresentação de premissas, aceitas por ambas as partes, e sua organização em conclusões, geralmente utilizando-se de princípios comuns ou apontando evidências.

A segunda forma é o Pathos, os argumentos que apelam à emoção, que colocam o ouvinte em um estado mental específico. Por meio de anedotas, casos e discursos apaixonados, uma pessoa pode dar apoio mesmo às ideias que não a compreenda muito bem. Veja o marketing moderno, que nos convence de que um carro é bom porque é uma fonte de virilidade, força e sexualidade, mesmo que ele seja absurdamente grande, custoso e consuma muita gasolina para os meus usos. Na minha leitura, utilizar o Pathos é tornar o discurso relevante para o ouvinte.

A terceira forma é o Ethos, os argumentos que apelam à autoridade. Mais do que um carteiraço, o Ethos apela à ordem, a moral e a ética, ao bem comum, ao senso do que é correto, virtuoso, honesto e honrado. Faltar com o Ethos é faltar em caráter, ir contra o Ethos é ir contra a sociedade. Neste texto, o Ethos é a credibilidade da fonte, quanto mais crível, mais importante é que ela esteja correta.

O modelo de Aristóteles é bem mais aprofundado, mas estes três conceitos já nos dão uma forma de pensar não só sobre a retórica, mas também sobre a informação e como a usamos para construir conhecimentos e consensos. Se nos perguntarmos por que acreditamos em alguma coisa, geralmente podemos apontar como Logos, Pathos ou Ethos. E o motivo para isso é bem simples: Não é fácil garantir que as informações para uma tomada de decisões são completas!

Imagine, você está cozinhando uma bela lasanha, usando um termômetro para regular o forno a 180º. Se a temperatura subir acima do nível, tem que diminuir o fogo e abrir um pouco o forno. Quando a massa dourar e o queijo derreter, você pode degustar sua janta. E isso vai ser o suficiente para quase todas as vezes que você estiver cozinhando. Estas são ações baseadas em um conjunto de informações precisas, com um fim claro, mas quantas escolhas de nossas vidas podemos reduzir a essa regulagem mecânica? Meu estilo de vida, minhas opiniões, não são comparáveis a esta forma de empiria.

Voltando às plantas e suas frutinhas, como eu posso saber que eu posso criar uma generalização, sem ter TODAS as informações relevantes sobre um assunto? Se a racionalidade é limitada pela quantidade de informações que dispomos e que conseguimos usar em uma análise, se o indivíduo não é capaz de experimentar tudo, de observar tudo, muito menos de lembrar tudo ou processar tudo, precisamos de estratégias para tomar decisões. Conhecer e decidir é, até um certo ponto, um ato de fé*.

E voltamos aos nossos Fake News.

Uma das assessoras de Donald Trumo afirmou que sua inauguração foi a maior de toda a história em número de espectadores. Quando confrontada por um repórter, dizendo que isso era falso, ela disse que tinham FATOS ALTERNATIVOS.

Jogada descarada de marketing e mentira para polarizar seus apoiadores? Sim, mas também uma afirmação estratégica, especialmente se vermos que sua campanha foi embasada em acusar conspirações de grupos do partido Democrata.

Estamos vivendo em um mundo mais quente, ou mais frio? Armamentos diminuem a violência? O poder de compra do povo está aumentando? Empresas públicas não funcionam? O empresariado gera riquezas para o povo, ou a tira para si? Questões mais complexas não são redutíveis a um fato observável. Pior ainda se há interesses políticos por trás de certas posições, criam-se fatos para controlar a população. Ainda sobre os EUA, um senador daquele país protagonizou uma anedota bizarríssima: Durante o seu discurso contra regulamentações ambientais, ele de modo triunfante, abriu sua maleta e tirou uma bola de neve de dentro dela, afirmando “Aqui está a prova de que a Terra não está ficando mais quente!”. Um esquete de stand-up decidindo nosso futuro climático.

Se olharmos para as redes sociais junto com as outras instituições midiáticas e políticas, vamos ver que o fenômeno dos fatos alternativos tem uma realidade mais profunda do que só a mentira. E sua relevância está aparecendo justamente por causa dessa participação intensa da população em um debate.

Primeiro vamos esclarecer algumas coisas. Parto do princípio que fatos materiais alternativos não existem, mas existem “realidades individuais” alternativas.

Aquela árvore plantada ali na esquina não deixa de existir para outras pessoas, mesmo para quem não saiba que ela é uma árvore. Mas um biólogo pode entendê-la e classificá-la por sua espécie. Um marceneiro pode cobiçar sua madeira para transformá-la em um móvel. Alguém pode achar que ela é um empecilho para que a rua fosse mais larga.

No livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” de 1962, Thomas Kuhn faz uma exploração brilhante sobre os paradigmas científicos. Ele argumenta que a ciência não é negativa, não se baseia na invalidação de falsas premissas, mas na aplicação consistente de diferentes metodologias e teorias para analisar e explicar o mundo. Desta forma, as ciências se desenvolvem por meio da criação de novos paradigmas, quando os métodos tradicionais se tornam insuficientes e um problema requer novas formas de análise. Compare a física quântica com a sua antepassada, a newtoniana, um paradigma é quase uma realidade alternativa, mesmo que analise um mesmo fenômeno.

Como devo olhar para este desenho? Como um coelho, ou como um pato? É o Patoelho, experimento de Wittgenstein. Fonte: Wikimedia

Nós também temos paradigmas, diferentes visões de mundo que embasam as nossas interpretações, são as realidades individuais que habitamos. Claro, uma pessoa pode transitar por mais de um paradigma, e o seu próprio paradigma individual pode se contradizer sobre várias questões, mas há, pelo menos, uma constância e uma sensação de identidade por trás deles.

Nesta identidade estão os critérios de relevância e de credibilidade. Somos porque mantemos esta constância que somos nós, e nossos paradigmas se tornam mais resilientes quanto mais atrelados forem a nossa identidade. Eles nos servem não só como forma de interpretar os fatos, mas também como uma segurança, um lugar onde podemos apostar quando há falta de informações.

Por que nos atermos a uma questão? Por que alguns preferem uma justiça punitiva, e outros preferem uma justiça reformativa? Por que alguns se incomodam mais com o crime, e outros mais com a injustiça?

Algumas pessoas desejam ver um criminoso punido para se sentirem expiadas, outras só se sentirão dessa forma se souberem que o criminoso será reformado ao voltar a sociedade. Nossos valores dificilmente são muito rigorosos. Não fechamos teses para cada um de nossos valores, é muito trabalhoso, demorado e que, quando fazemos, não costumamos usar um rigor muito grande (se alguém me perguntar porque sou contra a pena de morte, não tenho uma tese impressa que exponha minha arguentação para lhe emprestar). Até acredito que boa parte dos nossos valores são quase inconscientes, reações viscerais (guts) que nos movimentam muito mais do que os questionamentos racionais – reações de Pathos.

E o que é pior, nossos valores também podem mudar com o tempo!

E há um outro problema. O Ethos, a credibilidade e a moral social.

Se pegarmos as fotos da inauguração de Trump vamos ver que compareceram bem menos pessoas do que na de Obama. Basta contar. Por que uma parte do pessoal pró-Trump mantém o seu apoio diante de uma mentira deslavada? E por que ainda negam esta ser uma mentira?

Costumamos associar isso às ditaduras e aos regimes totalitários, uma máquina de propaganda estatal que consegue criar uma versão oficial dos fatos que forma uma verdadeira realidade que encobre o que é real (muito bem ilustrado em 1984, de Orwell). Pensamos que a falsidade é uma mentira imposta de cima para baixo para nos dopar.

Só hoje vemos como a falsidade também é uma escolha do indivíduo. Nós parecemos preferir a mentira à verdade, ainda mais se ela está de acordo com nossos ideais políticos**.

No jogo da democracia, grupos políticos precisam de consenso, uma forma de “realidade individual compartilhada”. Limitada para os seus fins, ela nos afeta pelas mesmas três formas que listamos aqui. Logo, se um fato aponta contra o consenso, uma parte majoritária do grupo terá que descaradamente ignorá-lo ou, em tempos de polarização, se posicionar contra o fato, afirmá-lo como uma mentira. A grande tragédia é que as massas são muito maiores do que os indivíduos que as compõem, não adianta uma pessoa mudar de ideia, se o grupo se mantém. Nem todo apoiador de Trump acreditou na mentira de sua secretária, mas apenas por ser seu apoiador, ele se enquadra em um debate cujo fim é a afirmação de um fato alternativo…

A política representativa é um jogo de estratégias e interesses que alimenta este problema. Num mundo em que as grandes questões são votadas por representantes em suas câmaras, em que elas são resolvidas com votos de sim e não, é necessário formar alianças e coalizações. Os consensos podem ser extremamente arbitrários, mas há alguma democracia no mundo em que a política não se divida entre situação e oposição? Todos os conservadores o são pelos mesmos motivos? Todos esquerdistas carregam as mesmas bandeiras? Não, mas os grupos quase sempre acabam se alinhando, por mais diversos que sejam os paradigmas de seus integrantes.

E quanto mais dividida é a política, maior o antagonismo temos com o nosso oposto, e menor é a nossa disposição de aceitá-lo. Em tempos de crise, não podemos dar um centímetro para a nossa oposição, ou arriscamos perder nosso já limitado poder no sistema. O Ethos tem esse lado bastante pernicioso.

O escrito Humberto Eco teria dito: “Mídias sociais dão voz a legiões de idiotas o que eles falariam apenas no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar danos à comunidade. Eles eram rapidamente silenciados, mas agora tem a mesma voz que um vencedor do prêmio Nobel.”

Apesar de adorar o trabalho dele, esta é uma afirmação bem simplista. Os debates bestas que vemos na internet não são a raiz do problema, nem quem participa deles, pois são sintomas de divisões sociais que vicejam numa fértil plataforma. O problema é o que está em voga, é o que, independente dos métodos retóricos, estamos discutindo.

Veja só. Um dos grandes divulgadores da ciência, Neil deGrasse Tyson, dedicou várias de suas aparições em público para refutar um rapper que afirma publicamente que a Terra é plana. Há canais no youtube e grupos no facebook dedicadas a bandeira “terraplanista”. Por que será que um cientista renomado tem que dar uma resposta na televisão sobre um tema tão besta, a uma pessoa que não é especialista?

Esqueçamos as figuras públicas e vamos aos seus “seguidores”. Por quê uma pessoa acreditaria que a Terra é plana, se temos até fotos orbitais e um histórico de experimentos e discussões sobre isso? Ora, porque isso lhe faz participar de um consenso, e um cheio de valor! Não é muito diferente de torcer para um time de futebol, por mais que devesse se basear em uma discussão racional, o fator aqui não é prova e contraprova, mas levantar uma bandeira, torná-la relevante, e usá-la para aparecer.

“Falem mal, mas falem de mim”, a fama é valiosa por si, e as redes sociais criaram um jogo ao seu redor.

Em uma outra realidade, este debate seria muito saudável. Duvidar e argumentar contra o que é consenso, buscar provas e criar teses, mesmo que sejam invalidadas, é uma das atividades que trazem o desenvolvimento científico (para Kuhn). E há argumentações e debates genuínos sobre o assunto, um canal que acompanho, o Cody’s Lab, fez um vídeo bem legal respondendo a algumas perguntas de terraplanistas sobre lentes atmosféricas e o efeito miragem, material de primeira que eu gostaria de levar para uma aula de ciência!

A Torre de Babel, de Gustav Doré. O caos se instala sobre a humanidade,quando ela não fala mais a mesma língua! – Fonte: Wikimedia

Definitivamente, estamos vivendo, não sei por quanto tempo, um período tão grande de liberdade de expressão que estamos mudando profundamente a forma como vivemos e nos organizamos.

É muito cansativo ser bombardeado com informações diversas, muitas delas falsas, e ter que investigá-las. Também estamos nos envolvendo em uma série de debates vazios, que desafiam e questionam os nossos paradigmas com uma obstinação quase perversa. Mas, talvez, estejamos vendo uma grande mudança da maneira como nos relacionamos com o certo, o errado e o alternativo. Talvez estejamos entrando em uma era de maior autonomia intelectual, na qual a autoridade perderá sua importância na nossa formação, e as pessoas passarão mais tempo se informando e debatendo.

Ou, pelo menos, assim espero…

* Uma das primeiras pessoas a trabalhar com este conceito na filosofia ocidental moderna foi David Hume, com o seu problema de indução. Aprendi com a seguinte anedota: “Após vinte anos de viagens e estudos, um biólogo estudante de cisnes chega a conclusão – Todos os cisnes são brancos. Décadas depois, um outro biólogo volta de uma viagem a Austrália, e diz ‘encontrei cisnes negros na minha viagem, nem todos são brancos!’. O que a comunidade científica faz? Aceita a nova afirmação, ou se mantém amarrada à tradição, a espera de mais dados?”.

** Ao tentar abordar o assunto baseando-se na cognição e na tomada de decisão, Pathos e Ethos acabam se mesclando, pois a moral e a autoridade nos afetam também por meios emocinoais (Totem e Tabú do Freud é um livro genial sobre isso). Gostaria de frisar a diferença entre os dois neste texto: o Pathos é relacionado a relevância, Ethos à credibilidade.

p.s1. Não falamos aqui sobre a hipocrisia, a propaganda como forma de controle, ideologia, patrulhamento ideológico, e vários outros assuntos relacionados. O texto já estava meio grande, e eu me demorando 😛

p.s2. John Perry Barlow, que escreveu o manifesto de independência da internet, faleceu dia 7 de fevereiro. Estudei muito pouco do ativista, não sei nada sobre sua vida pessoal, mas suas declarações foram muito inspiradores para mim (e a fundação da EFF, uma história para outro texto!).

Economia Gig, Toyotismo e Telecom

Gig: 1. Performance única de um músico ou grupo musical. 2. Uma carruagem puxada por apenas um cavalo. 3. Um gigabyte (dicionário de Cambridge).

Gig Economy – economia freelance, economia de contratos, economia do trabalho temporário, economia terceirizada.

Na década de 1970, uma revolução se iniciava no Japão. Uma de suas grandes companhias, a Toyota, desenvolvia uma metodologia de produção inovadora. O Toyotismo, como ficou conhecida, visava flexibilizar a produção, com trabalhadores organizados em times responsáveis por atender diferentes demandas da produção.

Quadro organizacional “lean production” da Scanfil

A administração científica entrava em uma nova era, uma na qual o trabalhador não era apenas uma parte de uma linha de produção, mas uma máquina flexível capaz de adotar várias funções. Sua produtividade era limitada pelo seu envolvimento, sua fidelidade à empresa, sua habilidade e sua motivação para a tarefa, e não só por prêmios e punições.

Kaizen, a busca constante pela melhoria, e os quadros Kanbam, que determinavam as tarefas rotativas para a semana, são os grandes nomes que apareceram para os funcionários. Já para a empresa, havia a nova necessidade de promover a alta competitividade através da eficiência da produção, ajustando-se às projeções das flutuações dos compradores e fornecedores.

Do ponto de vista financeiro, isso permite um enxugamento da máquina, gerando cortes de gastos na linha de produção, no controle de estoques e até no transporte de bens (ou seja, a enxuga-se mais os custos da produção). Esse tremendo esforço organizativo só pode vir a ser, a meu ver, a partir de uma tecnologia específica: uma rede de telecomunicações bem desenvolvida que permite uma comunicação entre a empresa e seus clientes de forma barata e com rapidez

O telégrafo começou a ser comercializado em 1837. No século que se passaria, as linhas telegráficas se multiplicariam até se transformarem em uma rede de comunicação global, ligando cidades, estados e continentes (o primeiro cabo para comunicação transoceânica foi colocado em 1858 entre EUA e Inglaterra). Eventualmente o telefone (patenteado em 1876) permitiu ligar para pessoas individualmente. É difícil conceber a quantidade de informações que fluíam pelo mundo já em 1970, mas se passou a cobrar de caractere escrito para mês de uso.

Linhas de telégrafo nos EUA em 1853

O consumerismo revolucionou os produtos, chegou a deixar a marca mais importante do que a roupa. Gerou novas bugigangas que se se tornavam uma necessidade para diferentes segmentos. O toyotismo, por outro lado, teria feito isso com o trabalho, transformando a produção em uma coisa mais importante do que a função. O trabalhador se torna capital humano. O trabalho se torna valioso por si, pelo que ele faz socialmente. Esta nova relação exige que o indivíduo que ocupe qualquer posto seja produtivo e motivado, ou outros melhores poderão vir.

O toyotismo e seus filhos (just in time, lean production, metodologias de desenvolvimento ágil*) se tornaram um dos principais meios de revigoração da economia. De certa forma, são eles que permitem a gerência para o trabalho criativo de pesquisa e desenvolvimento. Domenico de Masi, bastante famoso aqui no Brasil**, lançou um livro onde defendia o Ócio Criativo, afirmando que o trabalho criativo tinha se tornado tão importante que o lazer, o momento de se repensar, tinha que ser integrado nos ambientes empresariais.

Pode parecer uma simples brincadeira com as palavras, mas o engenheiro, o designer, não mais soluciona problemas, ele produz soluções. Marc Brunel, um grande engenheiro do século XIX, inventou o escudo de túneis, um método para escavação mais segura, sozinho, e só conseguiu ganhar algum dinheiro com sua invenção enviando cartas para toda a alta sociedade inglesa pedindo para fundos para terminar de construir o túnel do Tâmisa. Pense agora na política da Google de dar 20% de tempo livre para seus engenheiros empregarem nos projetos que quiserem (e que gerou produtos como o Google Earth). Não há uma inversão? Ser pago por ter inventado uma solução, ser pago simplesmente para inventar (ou para ser uma reserva inventiva, mas estou divagando).

Esse modelo é um gigantesco investimento. E os capitalistas, continuamente procurando como aumentar a liquidez de seu dinheiro, encontraram uma forma de melhorá-lo e expandi-lo.

Vamos voltar, agora, para as redes de comunicação. Compare a rede telefônica com a internet. O telefone nos deu o telemarketing, as insistentes ligações das empresas para nos vender alguma coisa. A internet nos deu o fitbit, aparelho que comunica passivamente cada passo que uma pessoa dá no seu dia! Nós informamos à empresa o que fazemos. E o custo dessa comunicação é desprezível.

Também não nos importamos de vender nossos dados por serviços. Como diz o ditado, “de graça até uma injeção na testa”, e de graça é aquilo pelo que a gente não sabe que está pagando.

Acho que foi pelo próprio desenvolvimento das redes que faz o toyotismo dar luz a Gig Economy, uma nova (e ainda pouco organizada) metodologia organizacional que já está em operação e girando capitais financeiros bilionários. O foco dela é uma ainda maior flexibilização das forças de produção e das relações de trabalho.

Um aviso antes de continuarmos, Gig Economy convive com o Toyotismo, com o Fordismo e com outras metodologias de produção. O que é importante apontar é o seu nascimento e sua provável ascensão à hegemonia, como meio principal de nós trabalharmos.

Agora financiamento é visto como um ponto central. Não mais se paga, mas se investe (financeiramente falando, dando dinheiro para ter retorno), e acredito que isso é bastante visível no fenômeno das startups, empresas de desenvolvimento tecnológico que contam com alto grau de capital privado para lançar produtos novos. Como no caso do Google, Facebook, Oculus Rift, Instagram, e outras, estas companhias trabalham com altos investimentos, produzindo preciosas patentes e garantindo reservas de mercado. Ser comprado por uma gigante do setor não é uma perda, um sinal de falência, mas um sucesso dos empreendedores.

O próprio desenvolvimento muitas vezes é visto como um concurso, concurso de marcas, bug-hunt e programadores freelancer cumprem papéis vitais para várias companhias. De novo, somente com uma infraestrutura tão grande como a internet para que os investidores possam trabalhar com tantos contatos e tantas informações.

Vamos olhar a cereja do bolo. A Über, empresa de transportes por aplicativo, foi fundada em 2009 e alcançou um valor de 69 bilhões de dólares em 2017, superando as montadoras de carro da GM, Ford, Nissan e da Fiat! Tudo isso sem ser dona de nenhum veículo.

Vocês já devem saber como ela funciona, rastreando motoristas e usuários por GPS, ela oferece um serviço de transporte (urgh, caronas pagas), estipulando o preço da tarifa e cobrando 25% sobre o pago. Fazendo a intermediação entre motoristas independentes e clientes, não acho que seria uma grosseria dizer que a Über seja uma companhia que é um mercado de motoristas.

As relações de trabalho da Über são controversas, mas são o seu carro-chefe. A empresa garante que seus trabalhadores não são funcionários, mas podem entrar no sistema quando bem entendem, e não custando nem um centavo trabalhista à empresa. Nas suas propagandas, ela afirma que é uma plataforma para qualquer um ganhar dinheiro, seja você um trabalhador de uma empresa precisando dinheiro para as compras de Natal (de novo o consumerismo), seja você um desempregado que irá alugar um carro para poder pagar suas contas.

O futuro da überização ainda é incerto. Recentemente, uma ação trabalhista na União Europeia classificou a empresa como uma de transportes (#1), exigindo que trate os seus motoristas como funcionários, mas este modelo tem inspirado tantas outras empresas, e com ondas legislativas pela flexibilização das leis trabalhistas (ver Brasil, Argentina e França neste ano), é difícil acreditar que ela seja apenas uma moda passageira.

A gerência interna da empresa também é disruptiva e controversa. Usando o mesmo sistema de avaliação que categoriza seus trabalhadores de uma a cinco estrelas, a administração dos funcionários da Über é controversa, gerando uma espécie de poder por pontuação que fica acima dos códigos de conduta e regras. Recomendo a leitura da carta de Susan Fowler, uma engenheira que trabalhou na companhia e, entre descaso e assédios morais e sexuais, ela pediu demissão após um ano de trabalho (#2).

O toyotismo tinha como foco o trabalho em pequenas equipes e na cooperação. Já a Gig Economy pode se dar ao luxo de se focar no indivíduo, de separar suas horas de trabalho e contabilizar sua produção com uma precisão de centésimos de segundo e a partir da satisfação de seus clientes. Ela trabalha com massas, muito mais estáveis do que as equipes, e com relações cada vez mais efêmeras, mas constantes, e mantém a ideia do toyotismo de trabalhar com o capital humano, seus desejos e suas motivações. Ela tem informações muito mais detalhadas sobre cada trabalhador e cada consumidor e utiliza um marketing de precisão. Ela não negocia seus contratos com indivíduos, mas os oferece em mercados.

Os boias-frias, trabalhadores temporários da agricultura brasileira, tinham emprego de acordo com a estação. Carregados em caminhões, cruzavam o Brasil para trabalhar nas colheitas por parcos pagamentos. Assim como eles, o trabalhador urbano moderno pode ser empregado apenas quando há serviço para ser feito. As máquinas informam quando. Assim como os ruralistas, a Gig Economy não precisa mais manter vínculos empregatícios, só cuidar com as sazonalidades da demanda.

Trabalhador Boia-fria no canavial, foto de Cícero R. C. Omena

A maioria das pessoas trabalha para se sustentar, para ter uma vida digna e pagar suas contas. A existência do emprego estável e de ambientes empresariais, com sua própria cultura, foi um marco do século XX, mas estamos numa nova onda que é uma mudança drástica nas relações de trabalho, precarizando, nos tornando incertos quanto a nossa renda mensal, a nossa empregabilidade e ao nosso futuro. Nossa relação com o dinheiro, hoje consumerista, continua a mudar. A Gig Economy promete aquele dinheirinho extra se espremermos umas horinhas a mais de trabalho por dia, mas se ela é tão promissora, será que todo o nosso dinheiro, inclusive o que usamos para pagar coisas vitais, como a nossa moradia, saúde e educação?

O que será que virá destas mudanças? Será que até mesmo os trabalhos especializados e os postos estratégicos, que hoje ainda vicejam no toyotismo, serão überizados? Alguns setores continuarão a funcionar sobre as lógicas anteriores, criando ainda mais subdivisões do trabalho bom e ruim?

Difícil saber, mas muitos outros movimentos estão surgindo com estas mudanças. Renda básica, microcrédito, reforma urbana, cooperativas e coworking, crowdfunding, produção distribuída, liquefação das relações, são apenas alguns dos termos sobre os quais vamos ter que falar.

*estas últimas na área de desenvolvimento de software, mas já transitaram para outros setores como o design e a arquitetura.

** Talvez a obra dele não seja seminal, mas acho que foi um dos marcos aqui no Brasil.

Algumas bibliografias

https://dictionary.cambridge.org/dictionary/english/gig

http://professormarcianodantas.blogspot.com.br/2015/02/os-boias-frias-e-as-condicoes-de.htmlhttp://www.bbc.com/news/business-38930048

#1 https://www.bloomberg.com/news/articles/2017-12-20/uber-suffers-setback-at-top-eu-court-in-clash-with-cabbies

#2 https://www.susanjfowler.com/blog/2017/2/19/reflecting-on-one-very-strange-year-at-uber

MASI, Domenico. O Ócio Criativo. Editora Sextante, São Paulo, 2000.

ALVES, Giovanni. Toyotismo, novas qualificações e empregabilidade. Rede de Estudos do Trabalho, 2014.

CIMBALISTA, Silmara. Toyotismo e o processo de motivação e de incentivo à inovação nas organizações. ANÁLISE CONJUNTURAL, vol 24. 2002