Neutralidade e Necropolítica no Ciberespaço

E a FCC, poderosa instituição federal norte-americana que regula as comunicações, decidiu pelo fim da neutralidade da rede. Agora os provedores poderão priorizar o tráfego de certos conteúdos, criando vias expressas de informação. Como o país concentra parte tão grande da infraestrutura da internet, esta decisão pode afetar o mundo inteiro.

Quando os engenheiros desenvolveram os protocolos IP, seu objetivo era de criar uma rede onde computadores poderiam se comunicar e trocar informações. Essa mesma tecnologia ainda é usada hoje, mas se aplica a um mundo completamente diferente, no qual não se acessam mais máquinas, mas plataformas digitais que concentram dados, público e algoritmos para relacioná-los. Para os engenheiros dos anos 60, os computadores trocariam apenas informações técnicas e estratégicas entre si.

Uma via expressa em Long Island, uma infraestrutura vital para a comunicação

Em 1991, a “World Wide Web” nascia. O engenheiro Tim Berners Lee definia um sistema de nomes e localizadores para que recursos pudessem ser encontrados entre diferentes redes de computadores. Muito provavelmente ele não tinha a menor ideia do que sua obra geraria, um ciberespaço transnacional que se tornaria o principal meio de comunicação de muita gente. Hoje, dependemos desse espaço até para marcar uma janta com os amigos.

A internet foi construída sem uma autoridade central, sem um plano diretriz. Pessoas foram descobrindo possibilidades e ligando máquinas e construindo páginas e oferecendo serviços. Por isso, muito do que existe foi feito nas coxas, ou engembrado sem maiores preocupações além de que “o negócio funcione”.

Logo, esta não é a primeira vez que se revê as regras pelas quais os provedores de acesso e os usuários (pessoas e empresas) mantém suas relações. Lá em 1996 o ato das telecomunicações foi um projeto de lei que teve um papel bem grande em definir como o ciberespaço se conformaria ao abrir espaço para que grandes conglomerados de comunicação assumissem parte da infra-estrutura da internet. Um dos primeiros ativistas da internet, John Perry Barlow, revoltado com a situação, chegou a escrever a icônica Declaração de Independência do Ciberespaço, que eu compartilho traduzida mais abaixo.

Uma coisa muito interessante aqui. Valorizamos, como sociedade, a concorrência e a competição, acreditamos que elas geram inovações e investimentos por meio de pessoas que assumem riscos. Mas parece que as decisões mais importantes acabam girando ao redor das regras e de suas exceções. A FCC é um departamento burocrático ocupado por pessoas indicadas, não eleitas, e generosamente acalentadas pelos lobbies (que é legalizado nos EUA). A decisão sobre como caracterizar o tráfego de informações na rede é, primeiramente, política, é uma sobre as regras do jogo da tal competição.

E mesmo que houvesse uma lei que protegesse a neutralidade, ela também estaria submetida a órgãos e instituições. Aqui no Brasil nós temos o famoso Marco Civil da Internet, uma lei que regulamenta o acesso à internet. Criado 2013 num debate acalorado entre os ativistas e os representantes das empresas de telecom (tabém conhecidos como deputados), ele protege alguns direitos individuais do usuário, mas também seus espaços e exceções a serem explorados no futuro. Sabendo que qualquer juiz pode ordenar os provedores a bloquear um serviço de internet – uma coisa que é considerada um ato de terrorismo pelas nossas próprias leis – fico em dúvida o quão segura é a garantia desta neutralidade*. As próprias operadoras de celular também podem oferecer pacotes com promoções para acesso ao whatsapp e o facebook (o que é muito prático, mas e se o consumidor preferir usar telegram e snapchat?).

Penso nesta “estratégia” de mudar as regras, e como ela é eficiente. O pombo enxadrista (nunca jogue xadrez com um pombo), mas aplicada nos jogos que ordenam nossas vidas. Achille Mbembe, filósofo de Camarões, escreveu um artigo muito interessante chamado Necropolítica, sobre a dominação moderna e pós-colonial. Baseando-se na história política da África e do Oriente Médio, ele afirma que o poder moderno não mais ocupa um lugar, não toma mais para si o papel de organizar as populações, submetê-las e ordená-las. É mais simples desordená-las.

A demolição de casas e de infra-estrutura, a interrupção do comércio, o assassinato de líderes, a construção de muros e postos de inspeção e os bombardeios “de precisão” caem numa categoria de poder, numa estratégia segundo a qual a forma de se submeter uma população não ocorre por meio de uma ordem política (uma ocupação, com governantes, leis e aparatos policiais), mas pela destruição das ordens que populações usam para viver. Elas perdem a capacidade de se organizar e tem que adotar novas regras, criam-se novas dependências.

Necropolítica, a política da morte, é esta estratégia de se destruir o mercado de uma cidade, interrompendo o fluxo de bens de uma população subjugada. É o bombardeio estratégico de um bloco de uma cidade afirmando que líderes terroristas residem lá. É um exercício de poder comprometido com a submissão do outro a qualquer custo, que, paradoxalmente, não impede que a força de ataque alcance seus objetivos, mas os facilita. A ocupação do Iraque na Guerra ao Terror, um exemplo de Necropolítica, conseguiu preservar os campos e a produção de petróleo num país que passou mais de quinze anos em conflito. Na verdade, a produção chegou a aumentar, feito impressionante de empreendedorismo e cuidado que, com certeza, não foi estendido à população.

É muito complicado traçar um paralelo entre a ação da FCC e as guerras mencionadas, mas acho que a extinção da neutralidade da rede tem quê da Necropolítica. Ela era um fundamento, é regra do jogo, e sua extinção é um ataque de surpresa na infraestrutura, nos desorganizará. Sem a neutralidade, quantas coisas não seriam diferentes? Talvez o Facebook jamais tivesse viralizado, ainda usaríamos o Orkut enquanto Zuckberg passaria o resto de sua vida pedindo mais espaço para sua empresa. Agora, com ela, toda uma lógica terá que ser revista. Resta-nos tentar se reorganizar e esperar os próximos golpes. Agora os provedores de acesso tomam um papel central na organização da rede.

Bom, passo a palavra a John Barlow agora:

Uma Declaração de Independência do Ciberespaço

Governos do Mundo Industrial, seus antiquados gigantes de carne e aço, eu venho do Ciberespaço, o novo lar da Mente. Em nome do futuro, peço que vocês, do passado, nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos aqui, e sua soberania não nos afeta.

Nós não temos um governo eleito, e provavelmente não teremos nenhum, e me dirijo a vocês com somente a autoridade da minha liberdade. Eu declaro o espaço social global que nós estamos construindo como independente das tiranias que vocês buscam impor. Vocês não tem nenhum direito moral de nos governar, e nem possuem métodos de se impor sobre nós.

Governos recebem seus poderes do consenso dos governados. Vocês nem solicitaram, nem receberam o nosso. Nós não lhes convidamos, vocês não nos conhecem, nem conhecem o nosso mundo. O ciberespaço não vive dentro de suas fronteiras. Não pense que vocês podem construí-lo, como numa licitação pública. Vocês não podem. Ele é um ato da natureza, e cresce a partir de nossas ações coletivas.

Vocês não estão engajados nos nossos grandes debates, nem vocês criaram a riqueza de nossos mercados. Vocês não conhecem nossa cultura, nossa ética, nem os códigos tácitos que já dão a nossa sociedade uma ordem além da que pode ser obtida pelas suas imposições.

Vocês clamam haverem problemas entre nós que precisam ser resolvidos. Vocês afirmam isso como desculpa para invadir nossos precintos. Muitos desses problemas não existem. Onde houverem conflitos reais, onde houverem erros, nós os identificaremos e corrigiremos pelos nossos próprios meios. Estamos formando nosso próprio Contrato social. Esta governança surgirá de acordo com as condições de nosso mundo, não do seu. Nosso mundo é diferente.

O ciberespaço se consiste de transações, relações e do próprio pensamento, arranjados como uma onda estacionária na teia de nossas comunicações. O nosso é um mundo que está em todos os lugares, e em lugar nenhum, mas é onde nossos corpos vivem.

Estamos criando um mundo onde todos podem entrar sem privilégios ou preconceitos de raça, poder econômico, força militar ou direito de nascença.

Estamos criando um mundo onde qualquer um, em qualquer lugar, pode expressar suas ideias e crenças, não importa o quão singular, sem medo de ser coagido ao silêncio e a conformidade.

Seus conceitos legais de propriedade, expressão, identidade, movimento e contexto não se aplicam a nós. Eles são baseados na matéria, e não há matéria aqui.

Nossas identidades são incorpóreas, então, ao contrário de vocês, não podemos obter ordem por coerção física. Nós acreditamos que será da ética, o auto-interesse esclarecido, e do bem comum que nossa governança surgirá. Nossas identidades podem ser distribuídas através de muitas de suas jurisdições, mas a única lei que todas nossas culturas constituintes reconhecem é a Lei Dourada. Nós esperamos ser capazes de construir nossas soluções particulares nesta base, mas não podemos aceitar as soluções que vocês estão tentando nos impor.

Nos Estados Unidos, vocês criaram uma lei, o Ato de Reforma das Telecomunicações, que repudia nossa própria constituição e insulta os sonhos de Jefferson, Washingotn, Mill, Madison, Tocqueville e Brandeis. Sonhos que estão encarnados em nós.

Vocês estão aterrorizados com os seus próprios filhos, já que eles são nativos em um mundo onde vocês serão sempre imigrantes. Por causa deste medo, vocês dão às suas burocracias o papel paternal que vocês tem medo demais para tomar para si. No nosso mundo, todos os sentimentos, expressões de humanidade, da mais vil a mais virtuosa, são partes de um inteiro, a conversação global dos bits. Nós não podemos separar o ar que nos sufoca do ar no qual batem as nossas asas.

Na China, Alemanha, França, Rússia, Singapura, Itália, e nos Estados Unidos da América, vocês estão tentando eliminar o vírus da liberdade erigindo postos de guarda nas fronteiras do ciberespaço. Eles podem conter nosso contágio, mas por pouco tempo, pois, em breve, o mundo será coberto pela mídia do bit.

Suas cada vez mais obsoletas indústrias da informação querem se perpetuar propondo leis, na América e no mundo, para terem para si a própria expressão no mundo. Estas leis tratam as ideias como um outro produto industrial, não mais nobre do que uma viga de aço. No nosso mundo, o que quer que a mente humana crie pode ser reproduzida e distribuída infinitamente, sem custo algum. A produção global de pensamentos não depende mais das fábricas.

Suas práticas cada vez mais hostis e coloniais nos colocam na mesma posição que os amantes da liberdade e da autodeterminação de antes, que rejeitaram a autoridade de poderes distantes e sem forma. Nós precisamos declarar nossos eus virtuais imunes de sua soberania, mesmo que vocês continuem a reinar sobre nossos corpos. Nós nos espalharemos pelo planeta, de modo que ninguém poderá prender nossos pensamentos.

Vamos criar uma civilização da Mente no Ciberespaço. E que ela seja mais humana e justa do que o mundo que os seus governos criaram antes.

John Perry Barlow, Fevereiro 1996.

* Me refiro aos bloqueios do Whatsapp de dezembro de 2015 e maio 2016, feitos por ordem judicial.

Referências:

Mbembe, Achille. Necropolitics. Public Culture, universidade de Duke, 2003 – disponível em https://www2.warwick.ac.uk/fac/arts/english/currentstudents/pg/masters/modules/postcol_theory/mbembe_22necropolitics22.pdf

Barlow, John Perry. A Declaration of Indepencen of the Cyberspace. E-mail de 1996, disponível em https://w2.eff.org/Censorship/Internet_censorship_bills/barlow_0296.declaration

Para Além dos Feeds?

Este é o primeiro post aqui do Terra Cinza, um blog sobre aquelas coisas que fazem o meu cérebro coçar (e espero que façam o seu também).

Já faz mas de uma década desde que o Facebook foi fundado. Esse ápice da web 2.0 deu as formas das redes sociais modernas e tornou o ciberespaço parte da vida de bilhões de pessoas. Foram (infelizmente) as corporações que popularizaram a internet, e hoje as corporações da internet são o centro da nossa sociedade da informação.

Há algo de estranho aqui. Vejo isso refletido em meus amigos e conhecidos. Bom, talvez veja isso só meu, mas eu não consigo me sentir bem com este Grande Irmão me vigiando. Não é só a sua onipresença vigilante que me dá nos nervos, os ads que me perseguem entre as páginas. É algo mais. É quase como se estivéssemos em um mundo diferente.

As terras virgens do triássico, por Knipe, 1912 – https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Evolution_in_the_past_(Plate_13)_(7724859992).jpg

Eu não recebi convite para o último casamento que fui, eu nem teria sido convidado se não estivesse na rede. Vivo conectado em vários jornais e não consigo saber quando vai ter corrida beneficente na minha cidade, ou qual entidade organiza o almoço para moradores de rua no domingo. Estranhamente, sei onde o Caetano Veloso estacionou seu carro. Anos depois do feito, recebi memes e vídeos relembrando o fato.

A grande mídia (esse bicho-papão) aprendeu, há muitas décadas, como transformar um acontecimento em um fato, como transformar uma narrativa em um episódio, como tornar imediato o que é distante e importante o que não nos afeta.

Mas as redes fazem com que nossas vidas se centrem em um feed, estamos numa competição pela atenção. O feed scrolla*, desce sozinho, organiza a sua linha me faz esquecer, me faz prestar atenção. Ele agrega informações, seleciona comentários, tenta me chocar e me prender. Eu só posso observar sua ação invisível, o poder do algoritmo. É uma gestão da relevância.

Foucault ficaria abismado. Seu texto “Vigiar e Punir” explora como revolução nas leis e nos costumes que surgiram no início da Idade Contemporânea mudou a forma do poder sobre a sociedade. Se antes os governantes exerciam e afirmavam sua soberania com a violência, fazendo a execução e a tortura uma espécie de espetáculo (com uma perturbadora aceitação do próprio povo), eles acabaram por adotar uma ferramenta mais eficaz, as disciplinas, o uso das instituições para modificar o comportamento. De um poder pelo “fazer morrer”, passava-se para o poder pelo “fazer viver”. Um retrato destas formas está nos livros 1984 e em Admirável Mundo Novo, onde os protagonistas convivem com sociedades de controle.

Mas disciplina não parece ser mais a palavra para o poder no século XXI. Enquanto não consigo nem imaginar sua forma, chuto os seus sintomas.

Comecei a pensar nesta página quando resolvi buscar algumas informações velhas no meu facebook. Vi quanta coisa estava enterrada por baixo de post após post, recuperáveis apenas para alguém muito interessado em ver minha história. Eu não tinha como organizar aquele material, como categorizá-lo, ordená-lo e recuperá-lo. Clicar no botão de publicar é jogar seu texto em uma máquina, só se pode torcer para que ele tenha algum impacto na hora.

Então, seu eu gostaria de escrever mais e publicar algumas ideias, haveria como produzir algo para além de um feed de notícias? Bom, vou tentar começar por aqui, um ambiente que eu tenho um pouco de controle.

Ainda não tenho uma forma definitiva para esta página. Estou pensando em textos, como organizá-los, que tipo de conteúdo virá. Por enquanto, espere um pouco de tudo. Posts sobre ciência, filosofia, história, filmes, quadrinhos, jogos, política e crítica, textos um pouco mais longos, para aquela leitura em casa. Visite, espero ter pelo menos um post novo por mês aqui.

E como acompanhar? O RSS já está aí, apesar do Terra Cinza ainda não ter uma página no facebook nem twitter, eventualmente chegaremos lá (grita o revolucionário do sofá: Vamos tomar para nós o poder dos feeds! :P).

*neologismos horríveis, já aviso que uso e abuso deles