(Quase) Dois Anos em uma Pandemia

Um relato sobre a minha vida durante 21 meses da pandemia de COVID-19 no Brasil.

Novembro de 2021, uma tarde de sábado ensolarada. Eu coloco uma máscara simples e saio para correr. Passo pela avenida, subo por algumas ruas menores em direção ao parque. O dia está excepcionalmente calmo, há poucas pessoas zanzando, mas talvez 30% esteja sem máscara. Deve ser por causa da chuva que passou, o ar está abafado. No parque há uma feira de artesanato com pouquíssimas pessoas. Eu sigo na corrida, passo perto de uma zona boêmia, mais cheia, encontro um casal de amigas, elas vieram para tomar uma cerveja no final de tarde. O cumprimento é um toque no ombro. Cada um de nós está de máscara e papeamos por alguns minutos, distantes pelo menos um metro. Sigo para casa.

Eu nunca pensei que viveria algo assim. está chegando 2022 e desde Março de 2020 vivo a pandemia de COVID-19. De lá para cá rascunhei alguns textos para colocar aqui, mas nada parecia muito relevante. Nada que eu fazia ou pensava parecia ter alguma importância. Vivi um momento histórico, uma emergência mundial, e o único esforço continuado que eu pude fazer foi reduzir meu tempo fora de casa, usar máscaras PFF2 e higienizar as mãos. Faz três meses que eu tomei a minha segunda dose da vacina. Só agora comecei a reencontrar os amigos.

O Início

Tudo começou em 2019, na China, na cidade de Wuhan. Alguns jornais “ocidentais” anunciavam uma misteriosa doença, afirmando que o governo chinês queria esconder os fatos, e que whistleblowers, médicos que iam contra a censura, pintavam um quadro bastante desolador na cidade. Era muito difícil saber o que era exagero, afinal, mesmo a mídia chinesa também anunciava, não nos mesmos termos, que alguma coisa estava errada. Na guerra fria do século XXI a cortina não é mais de ferro, está nas entrelinhas das notícias. Apesar de terem identificado um novo coronavírus no dia 9 de Janeiro tudo parecia muito distante, como mais um surto de gripe suína. Foi apenas quando Wuhan entrou em lockdown, no dia 23 de Janeiro, que aquilo começou a se tornar um acontecimento. Os jornais passaram a noticiar o pesado toque de recolher, pessoas passaram a ter horários específicos para sair de casa e a cidade parecia abandonada. Assistir as notícias da BBC, CNN ou DW era como assistir a uma série de televisão, cidadãos sendo trancados em casa, suas vidas interrompidas. Eu não pude deixar de notar a mensagem nos editoriais, afirmando que o confinamento era autoritário e que só poderia ser feito em um país repressivo e ditatorial.

Eu já tinha passado por surtos de doenças antes, as mais graves foram o H1N1 de 2009 e a Zika/Chikungunya de 2015. Um conhecido meu faleceu em 2009, mas sinto isso como um triste acidente; afinal, a doença havia sido controlada por uma campanha de vacinação em pouco tempo. A Zika era um conto de terror dos lugares mais distantes do Brasil, um perigoso vírus que causa microcefalia. Milhares, talvez dezenas, ou mesmo centenas, de milhares de pessoas foram afetadas nesses surtos, mas nunca na mesma escala como o que estava para acontecer. Em 30 de Janeiro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou o COVID-19 como uma ameaça séria a saúde pública. Em menos de dois meses ela se tornaria uma pandemia global.

Ruas Esvaziadas

Quando a COVID chegou na Itália, os jornais começaram a mudar o tom. O primeiro caso no país foi detectado no dia 15 de fevereiro, e no início de março chegou a tragédia. Vi, dia após dia, os hospitais se enchendo de pacientes, idosos sendo entubados, cemitérios cheios e pessoas se isolando socialmente. O vírus cruzara a cortina de ferro, não era mais algo do outro mundo, não era mais algo distante, mas uma tragédia acontecendo em tempo real. Acompanhando as notícias com preocupação, mas ainda sem saber se a pandemia chegaria no Brasil, segui na minha rotina normal, fui a aniversários, formaturas e até a inauguração de uma loja de uma conhecida. Lembro de vídeos de hospitais cheios de idosos e de italianos solidários que cantavam nas suas sacadas para animar os vizinhos. Ninguém tinha ideia do que iria acontecer.

Dia 8 de março foi o meu último encontro presencial com os amigos. 11 de março a OMS declarou o COVID-19 como uma pandemia global. Dia 13, o Brasil publica a primeira portaria sobre as medidas de contenção e isolamento do vírus. Dia 14, as aulas foram suspensas. Nesse curto período o mundo virou de cabeça para baixo, e eu já não podia nem mais fazer o experimento da minha tese. Dia 16 começou a “quarentena”. Numa manhã eu acordei e encontrei as ruas da cidade vazias, eu estava em Wuhan. Lembro que saí para dar uma corrida, até parecia um feriado.

Desde as eleições de 2018, quando Jair Bolsonaro se tornou o presidente do Brasil, eu vivia meio que numa emergência. Briguei com conhecidos e familiares enquanto assistia o contínuo aparelhamento do estado, a destruição das políticas públicas e ambientais, assim como as maiores queimadas da história do país. Para mim, eu já vivia a maior crise da história, algo que só pode ser descrito como uma loucura nacional. De repente, foi como se tudo se suspendesse no ar.

A Realidade em Disputa

Minha cabeça foi rapidamente tomada pela pandemia. Durante os primeiros meses, eu desesperadamente procurei projetos sociais e iniciativas para tentar contribuir, como o mutirão contra a fome, do Movimento dos Pequenos Agricultores, e o mutirão para dar internet a estudantes que não poderiam mais ir à escolas. Fiz materiais informativos, trabalhei na construção de redes de contatos, li bastante… A maioria desses esforços não duraram mais do que alguns meses.

As pessoas mais otimistas acreditavam que seria um trimestre de isolamento social para voltarmos à normalidade. Infelizmente, não foi bem isso o que aconteceu.

Enquanto estávamos tentando nos orientar e construir uma nova rotina (eu, por exemplo, demorei quase um mês para começar a usar as máscaras), o governo se recusava a aceitar a gravidade da pandemia. Não houve nem mesmo a instalação de barreiras sanitárias nos aeroportos e, neste primeiro mês, ouvíamos de casos aqui e ali de festas que espalhavam COVID para centenas de pessoas. Enquanto eu me debatia sobre a importância de usar as máscaras PFF2, as carreatas começaram, movimentos para manter o comércio aberto, geralmente com pessoas usando roupas verde-amarelo, se espalharam pelas cidades do Brasil. A proposta era uma “imunidade de rebanho” e o “isolamento vertical”, estavam realmente discutindo de separar os grupos de risco, como idosos, e deixar a população geral se contaminar acreditando que a pandemia “passaria logo”. A situação foi tão absurda que não houve números oficiais da COVID produzidos Brasil, eles foram coletados por um consórcio de jornais, e pode-se dizer que o próprio presidente executou uma “estratégia de propagação da pandemia”. Todo esse plano de negação, também foi proposto em vários lugares do “mundo ocidental liberal(especialmente EUA e Inglaterra), contrastando com países como a China, a Coreia do Sul, o Vietnã, Israel e outros que implementaram rigorosos protocolos de biossegurança, test and trace e quarentenamento para reduzir o contágio ao máximo. Muita gente comprou isso, sob um grito de que estavam lutando por sua liberdade (de novo, a tal da cortina de ferro)…

Perdi a conta de quantas vezes uma figura pública, um colunista, um economista, empresário, personalidade ou político, veio dizer que o isolamento é ineficaz e/ou danoso, que faz mal para a economia, que o melhor mesmo era deixar a doença se espalhar. Algumas posições mais suicidas afirmavam que haviam medicamentos que seriam uma cura secreta que a OMS estava escondendo de nós. Li relatos de pessoas que tiveram falência hepática por causa dessa automedicação desesperada, e de médicos que mataram pacientes com procedimentos bizarros, aplicando remédios de forma incorreta e letal. Pensar em algo que nos faz se sentir vulneráveis é muito difícil, muita gente se coloca em risco na tentativa de se sentir segura.

O Tempo não Pára

A vida no auge da pandemia foi de uma rotina muito rígida. Todo dia, acordava às 7:00 com o meu despertador. Levantava e tomava um café da manhã, geralmente uma caneca de café, lavava a louça, os óculos, escovava os dentes e ia para o banho. Pelas 9:00 eu sentava na frente do computador para começar a ler notícias e redes sociais, como o twitter, que acesso apesar de não ter conta, para ver qual o tópico do dia. Tudo isso até umas 10:00, às 11:30 eu ia almoçar. De segunda à sexta almoçava na casa de minha mãe, a única pessoa com quem mantive convívio, sábado e domingo, almoçava em casa. Às 16:00 eu saia para correr, e a janta era às 20:00. Eu ia dormir às 22:30. Durante todo o dia, nos horários não especificados, “trabalhava”, uma atividade que me causava estranha desorientação, alguns minutos de escrita e/ou leitura intercalados por visitas compulsivas a sites de notícias, ao twitter de jornalistas e aos feeds RSS e escapadas a videos do Youtube, conversas pelo Whatsapp e livros e séries. Pouquíssimas vezes essa rotina foi quebrada, alguns dias eu ia à feira ou a supermercado, tinha também o dia de cortar o cabelo… Algumas emergências aconteceram, o cabo de internet rompeu e passei três dias com os técnicos até resolver o problema; a válvula hidra no banheiro estourou e tive que chamar um encanador na emergência. Dá para contar nos dedos de uma mão os dias que me encontrei com alguém diferente. Durante esse período, tivemos semanas com uma média de mais de mil pessoas morrendo de COVID por dia. As cenas mais horríveis ocorreram em Manaus, cidade que passou por dois colapsos do sistema hospitalar. Mesmo com as emergências médicas, a falta de oxigênio e medicamentos para intubação, mesmo com cenas de pessoas em camas pelos corredores dos hospitais e de enterros em valas comuns não encerraram o negacionismo. Nem todo mundo aceitava ouvir notícias e olhar as imagens.

Apesar de estar em isolamento social, mantive constante contato digital com amigos e colegas. Memes, fotos e notícias, explicações de como fazer alguma coisa, desabafos, são muitas as mensagens que pontuam o meu dia. Essa é uma forma de se comunicar bastante trabalhosa, algumas conversas bobinhas chegavam a ocupar meia hora de digitações de textos e áudios com explicações do que realmente se queria ter dito. Videochamadas também tem seus problemas próprios, muitas vezes são precedidas por uma verdadeira sessão espírita até que o contato seja estabelecido (“você está aí?”). Nestes meses, não fui a restaurantes, bares e cafeterias; minhas poucas saídas foram aos parques, apenas para correr. Em apenas duas ocasiões saí da cidade, passando apenas uma noite fora.

Foi em Setembro de 2020 que as primeiras vacinas entraram na fase três de testes, seriam testadas em seres humanos. Os institutos Butantã (do governo do estado de SP) e a Fiocruz (autarquia vinculada ao governo federal) tinham se articulado para trazer as vacinas ao país, praticamente de forma independente, num ato de rebeldia contra o governo. No dia 17 de Janeiro de 2021, Mônica Calazans foi a primeira brasileira vacinada contra o COVID. Eu só tomaria a minha primeira dose em setembro de 2021, um ano e seis meses depois de tudo começar.

O Futuro e o Passado que Ficou de Fora.

Não escrevi aqui sobre o assassinato de George Floyd e os movimentos Black Lives Matter, ou da fundação da Capitol Hill Autonomous Zone, uma comuna em plena Seattle. Tão pouco sobre o movimento Vidas Negras Importam no Brasil, o movimento social de maior expressão durante a pandemia, o novo garimpo, o troca-troca de ministros da saúde, da situação de fechamento das escolas e dos estudantes que não tinham acesso à internet, ou à merenda. Não escrevi sobre a CPI da COVID, que descobriu um plano descarado do governo de roubar dinheiro na compra das vacinas, do novo cangaço, das queimadas do pantanal, nem dos movimentos anti-vacinas e das emergências de novas cepas. Não mencionei o fim da guerra do Afeganistão, e tantas outras coisas que aconteceram… Enquanto escrevo esse texto, vários países de primeiro mundo, que compraram os primeiros lotes de vacina, não conseguiram vacinar mais de 80% de suas populações e estão vivendo novas ondas da doença. O mundo não parou, mesmo que a minha vida tenha ficado tão pequena.

Mais de seiscentos mil brasileiros morreram de COVID. No mundo, o número ultrapassa a 5 milhões de pessoas. Nem 60% da humanidade foi vacinada e há uma disparidade gigantesca, os países mais pobres não chegam a ter 10% da população vacinada. A pandemia ainda está longe de acabar, o Reveillón está sendo cancelado em várias cidades, e é possível que não tenhamos carnaval em 2022. Eu não faço ideia de como o mundo será a partir de agora. É quase ano novo, as pessoas retomam as ruas, ainda com uma promessa de “volta à normalidade”. Será que é possível voltar mesmo? Será que podemos voltar o relógio e simplesmente desfazer o que foi dito e o que foi feito? Esquecer as mortes e o descaso?

É muito difícil captar as mudanças que nos cercam. Parece que os nossos cérebros não foram feitos para viver em um mundo em mudança.

Um feliz ano novo, e obrigado por ler!