Fake News e a ascensão das Teorias da Conspiração

– “É chamada Síndrome de Vênus, um cenário de fuga planetária do aquecimento global que está causando a sexta extinção. Os ricos se prepararam para sair do planeta, para ir para o espaço. Por isso, o armam contra os pobres. As massas miseráveis da humanidade que não forem exterminadas pelas elites fascistas ultra-violentas terão que ser impedidas de fugir do planeta. Claro, se você acreditar nesse tipo de coisa.”

Arquivos X é uma série de 1993 sobre dois agentes do FBI que investigavam casos relacionados ao paranormal. Suas histórias eram baseadas numa verdadeira mitologia com os extraterrestres na área 51, sociedades secretas como o Majestic 12, experiências genéticas no exército, raios de controle da mente e até os jacarés no esgoto, sempre apresentados pelas lentes da credulidade do agente Fox Mulder e do ceticismo da agente Dana Scully.

Após nove anos, o seriado mudou bastante. Parte das teorias se revelaram verdades, e os agentesencontraram monstros, organizações secretas que comandam o mundo e foram até abduzidos por alienígenas.

Na décima temporada de Arquivos X, lançada depois de um hiato de quinze anos, Mulder encontra uma espaçonave alienígena que funciona com energia limpa e é capaz de manipular a gravidade. Ele não tem dúvidas, o seu cenário da Síndrome de Vênus era a explicação perfeita do porquê a nave ser um segredo do governo.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:I_want_to_believe.svg

Nunca gostei muito da série, sempre achei meio episódica e confusa para um telespectador casual, mas essa cena acabou me marcando. Era no final de 2016, um ano especialmente complicado na política, e dois casos estavam na minha cabeça.

O primeiro era a ressurgência do Terraplanismo, a ideia de que a Terra é plana. Grupos terraplanistas sempre existiram, mas ganharam notoriedade por causa de uma sequência desconcertante de tretas nas redes sociais que culminaram com o físico Neil DeGrasse Tyson fazendo uma apresentação desconcertante de hip-hop para mostrar para o rapper B.O.B. os argumentos e provas científicas do porquê a Terra ser redonda. B.O.B. não foi convencido, e continua tentando juntar dinheiro ao redor do terraplanismo.

O segundo era o escândalo do Pizzagate.

Após o hacking dos e-mails do líder da campanha presidencial de Hillary Clinton no WikiLeaks, um troll da internet montou uma história que havia um código escondido nos textos indicando um grupo de satanistas traficantes de crianças na cúpula do partido democrata. Isso foi divulgado pelas redes sociais, onde cresceu e ganhou tração, até chegar nos sites de mídia fake news sensacionalistas, que publicam indiscriminadamente notícias falsas de acordo com seus objetivos políticos. Agora a história dizia que o grupo se reunia em uma pizzaria na cidade de Washington.

Passou-se um mês e, em dezembro de 2016, um homem de 28 anos atirou contra o restaurante. Ele tinha cruzado vindo de um outro estado, com um fuzil embaixo do braço, para “investigar o caso”, e até tinha tentado recrutar outras pessoas para o ataque. O incidente terminou, felizmente, sem nenhuma vítima.

O escândalo ficou famoso como um marco para as fake news e apareceu em vários jornais mainstream, era uma espécie de campanha de conscientização. Foi, na verdade, mais uma tomada de consciência geral sobre o fenômeno, as fake news chegaram para ficar.

Os dois casos dariam bons episódios Arquivos X, mas foram reais. Assim como na série, os teóricos da conspiração deixaram de ser aqueles tiozinhos extravagantes, isolados, cheios de manias e com seus chapéus de folhas de alumínio, para se tornaram líderes de grandes movimentos, suas ideias se espalham, atraem seguidores. Hoje eles organizam movimentos que conseguem mobilizar milhares, ou milhões de pessoas.

Como chegamos aqui? Em pleno século XXI, com um sistema aberto de comunicação global, onde a informação está amplamente disponível para ser checada, o resultado não deveria ser uma cultura mais próxima da realidade?

Na verdade essa era a ideia do teórico de mídia Pierre Lévy. Para ele, a internet da década de 90 era um reino de oportunidades. Iniciava uma nova era nas comunicações humanas, uma onde a da granularidade reinaria, onde as mensagens se fragmentariam e se desprenderiam de seu contexto um grande ciberespaço infinito, onde diferentes pontos de vista conviveriam sem a possibilidade de se totalizarem (de tentarem apagar os outros). O ciberespaço exprimiria a diversidade humana. Não haveria um domínio, mas uma realidade a ser encontrada. Era uma totalidade não totalizante.

Some isso ao desenvolvimento científico, o acúmulo de conhecimento gerado nas academias e validado pelo método empírico. Era uma utopia, um mundo onde o conhecimento poderia se sobrepor à realidade, aumentando-a, transmutando-a. Talvez, foi por isso que o agente Mulder exclamou, quando encontrou seus antigos casos arquivados no início da décima temporada:

– “Scully, desde que fomos embora, a maior parte do inexplicável foi explicado!”

Não haveria mais espaço para a mentira, porque a verdade estaria lá fora.

Mas as coisas não ficaram desse jeito. A terra plana está aí para provar, não mais como uma hipótese a ser investigado, mas como uma insistência quase fanática de um grupo de pessoas indispostos a mudar de opinião.

Lévy acertou em cheio sobre como a informação se transformaria, mas errou feio sobre como nós nos apropriaríamos dela. O ser humano não é racional, é afetivo, mistura sentimentos ao pensamento, tem reações instintivas e viscerais e, até certo ponto, é computacional. Pensar dá trabalho, comunicar-se dá trabalho, seguimos a lei do menor esforço. A hiperconetividade dá origem a um novo tipo de informação, a microinformação.

Se a escrita, o correio e a imprensa permitiram transitar grandes volumes de informações, a internet traz uma nova característica. A questão agora não é mais como mover um caminhão carregado de palavras por grandes distâncias, podemos fazer isso com apenas um clique no mouse. O limite agora se encontra não na produção, mas na recepção. A questão agora é como alcançar o grande público, e a melhor forma parece ser comprimir a maior quantidade de informação na menor mensagem possível.

Veja o exemplo dos memes, fotos com pequenos textos que construídas passar rapidamente informação e nos provocar reações. Você coloca o Chapolin Colorado com uma cara de esperto e um texto lacrador, e você tem um pequeno vírus político que se espalhará rapidamente pela rede. esses snippets multimídia se adaptam a diferentes contextos e mantém uma mensagem bem resiliente, muitas vezes se relacionando com alguma coisa que está acontecendo ou que ainda está na memória do povo. E, essa é uma mídia surpreendente que consegue usar, em igual escala, os recursos retóricos do Logos, Pathos e o Ethos (razão, emoção e autoridade, como discutimos aqui).

Isso não é uma crítica à microinformação. Ela tem sua potencialidade e as suas virtudes. Um exemplo que me vem são os vídeos do three minute philosophy. Neles, o autor passava rapidamente uma ideia da filosofia em apenas três minutos, com muito humor, uma narração frenética e alguns desenhos do Paint. Você pode aprender muita coisa, desde os princípios do racionalismo cartesiano à moralidade deontológica de Kant. Claro, nada muito profundo, mas uma excelente introdução que já te permite aplicar os conceitos com segurança, de uma maneira mais clara que lendo os textos longos e confusos onde eles foram criados.

A grande questão da microinformação é a viralidade. Ela não se importa em trazer uma informação para todos os que a lerem, mas em provocá-los. Quanto mais potente ela for, mais impactante será para quem lê-la, e vai se mover com uma maior velocidade. Afinal, para uma pessoa clicar ou compartilhar alguma informação, tanto faz o que ela lhe provoca. É mais um reino de calls to action, de marketing direcionado, e de sobreposição de paradigmas e militância virtual, muito mais do que um de diálogo e entendimento.

E o que isso tem a ver com as teorias da conspiração do nosso amigo Fox Mulder?

[Informação, Conhecimento, Teoria da Conspiração. Tirinha encontrada no imgur, adaptada de um trabalho de Hugh Macleod.

Conhecimento é narrativa. É juntar um conjunto de elementos, princípios, fatos, elencar causas, consequências, fenômenos. E num mundo onde a informação é abundante e fragmentada, fica fácil cair em algumas armadilhas cognitivas, principalmente no viés de confirmação (confirmation bias).

Convenhamos, é muito bom estar certo.

Só que quando ficamos imersos em um mundo de informações e microinformações provocantes, as narrativas tomam uma vida própria. O que acontece quando elas começam a absorver pedaços desconexos da realidade, desordenados no tempo e no espaço? O que acontece quando você pode encontrar informações para praticamente tudo o que você desconfia? E o que acontece quando essas informações são entregues a você, por um algoritmo que te conhece profundamente?

Você começa a se organizar com pessoas que pensam igual.

Teorias da conspiração são pseudoteoria que envolvem projetar forças e planos ocultos, uma ordem ou organização maléfica, que estaria por trás de vários acontecimentos, muitas vezes não relacionados. E vou dizer que elas me lembram um pouco o nosso conhecimento em rede. É uma pergunta constante “como posso relacionar isso com o que já sei?”

Tive uma conversa com um paranoico (delírio de perseguição). Ele tinha certeza que carros que passavam na rua estavam lhe vigiando. Isso tudo porque o governo queria monitorá-lo e torturá-lo, impedi-lo de fazer sucesso e trabalhar. Tudo por uma questão de estratégia norte-americana de nos manter sob seu domínio, ele dizia. Essas afirmações eram a história que ele usava para ordenar seus sentimentos aterradores, invariavelmente o colocavam no centro do mundo.

O pior é que uma teoria da conspiração é resistente a fatos e provas. Ela incorpora tudo, sem se alterar. Acho que porque ela tem uma constante, a identidade do “teorista”.

Não estou querendo dizer que estamos todos ficando paranoicos, as conspirações e a paranoia são apenas um possível lado mais extremado do efeito que estamos passando.

O que quero dizer é que a rede pode ser uma totalidade não totalizante, como sugere Lévy, mas talvez nós, pessoas, sejamos agentes totalizantes. Uma boa parte de nossas opiniões são como teorias da conspiração. Há certos aspectos nossos que são muito resistentes à empiria. E isso é necessário, pois esses aspectos são nossa personalidade, alguma coisa que não deveria ser destruída com as experiências. Em um mundo onde a informação cada vez mais usa nossas reações mais primordiais para ser transmitida, talvez nós nos fiquemos mais próximos de nossas totalidades mentais do que da realidade.

Fake News, gíria moderna que usamos para nos referir a uma infinidade de problemas e questões trazidas pela mídia em rede e os seus efeitos de propaganda e desinformação, sedimentada como a produção e a divulgação de notícias falsas por “pessoas comuns” (não por grandes veículos).

Este é um termo guarda-chuva, é um meme, uma chamada, uma notícia inteira, um documentário. Tudo com um grande compromisso: passar uma informação com um viés específico, que costura eventos (reais ou completamente imaginários) para traçar uma narrativa que nos provoca.

Visitei alguns portais de fake news de esquerda e direita. É quase um modus-operandi. A chamada é sensacionalista, sempre se vinculando com algum escândalo, o portal tem um viés político descarado, são publicadas apenas notícias que servem a uma agenda. O conteúdo é, em maior parte, comentário sobre a situação, com poucas referências aos fatos do incidente reportado. A informação falsa é seguida de um comentarista gritando, por uma hora, sobre como o mundo está ruim, como o estado está falido, como há uma conspiração, como há um inimigo. Parece um pouco a ideia de pregação, de culto, um relembrar, um professar constante, uma afirmação de certezas. Talvez mais como os “dois minutos de ódio” em 1984, você exercita suas crenças, relembra-as e tem uma recompensa cerebral por fazê-lo. Talvez tenha a ver com a natureza da mentira, você tem que tornar difícil para que as pessoas consigam encontrar o que é falso.

Mas as fake news não vivem apenas numa esfera midiática e ideológica. Elas tem um fim primário, que é causar uma reação nas pessoas que as leem. Movimentar as pessoas. Elas instrumentalizam as teorias da conspiração pois mesmo quando se referem a fatos reais os recobrem com uma certeza e um posicionamento. Elas organizam ao afirmar “isso aqui aconteceu por causa daquilo que nós já sabemos”. É o primeiro passo para o totalitarismo, a união das pessoas ao redor de um modo de pensar único.

Isso não é incidental, e você não precisa ir para os cantos mais obscuros da internet para ver pessoas empregando essas técnicas. Dá até pra pensar que nossa sociedade foi abduzida por forças sombrias, mas, na verdade, o conhecimento tem uma utilidade política. Think-tanks, instituições de propaganda e marketing… Estas técnicas que, apontam, causaram a eleição de Trump e o Brexit em 2016. Se lembra do escândalo da Cambridge Analytica? Vai sair um filme, e se o trailer não mentiu muito, essa será a sua argumentação.

Fake News nos permitem olhar de uma maneira diferente para a “mídia tradicional”. É como as linhas editoriais dos jornais, mas ainda mais comprometida com uma agenda.

É comum os jornalistas empregarem o termo Fact Checking, a checagem de fatos, tomando para si, o papel de dizer o que existe e o que é falso. Esse é um trabalho essencial hoje, em que um corajoso profissional desbrava uma longa cadeia de informações e desinformações, criando uma genealogia da mentira, mostrando, de uma vez por todas, o que é verdade e o que é mentira.

Mas é engraçado como o próprio Fact Checking não escapa dos mecanismos que alimentam as fake news. O sensacionalismo, por exemplo, uma vez li uma chamada mais ou menos assim “Candidato erra número sobre não sei o quê”, daí na matéria estava escrito “disse que era 20%, mas na verdade é 16,75%”. Parece um grido de “rá! ele estava errado, nós temos a verdade!”. Talvez a estrutura incentiva à prática.

A “mídia tradicional” sempre trabalhou muito com uma ideia de ser dono da verdade. E os jornalistas e os próprios veículos fazem leituras enviesadas. Compare diferentes manchetes de uma mesma notícia em jornais diferentes. Você verá, consistentemente, as linhas editoriais, que traduzem as notícias em uma narrativa. Só que há grupos que mantém seus “editoriais” e sua própria produção de fake news.

Hoje, a informação não mais liberta, ela está mais para um psicotrópico que consumimos para nos manter em um determinado estado de espírito, do que numa ferramenta para construir novos conhecimentos e visões de mundo.

Ideias complexas requerem empiria e diálogo. Raciocinar, aprender sobre o mundo ao nosso redor e suas leis mais abstratas, tem um custo computacional grande. Seguimos a lei do menor esforço. E, com isso, criamos toda uma dinâmica explosiva na rede. Muitas vezes que lemos é acomodado ao que já sabemos, como numa teoria da conspiração.

O que faltou para Lévy foi imaginar como nós nos comportaríamos diante de um mundo onde a informação foi trivializada. Na verdade não foi só para ele, ninguém sabe muito bem como fazer para evitar que a ficção nos mova mais que a realidade.

Bibliografia recomendada:

1984, livro de George Orwell publicado em 1949. Clássico da ficção científica sobre uma ditadura distópica de Oceania, que mantém um apertado controle sobre a história e a própria língua do povo. O livro foi escrito com suas reflexões sobre os grandes movimentos totalitários do século XX.

Cibercultura, livro de Piérre Lévy de 1997 no qual ele cria suas previsões sobre como seria a nova cultura do ciberespaço. Bem interessante, principalmente para nós que vivemos nesse mundo.

HyperNormalisantion. Um documentário da BBC de 2016, produzido por Adam Curtis sobre a mídia moderna e seu uso na política.

The Fringe Insurgency, Connectivity, Convergence and Mainstreaming of the Extreme Right. White paper de 2017 publicado pelo Institute for Strategic Dialogue analisando uma sociologia das comunidades virtuais.