Identitarismo, um modo de se organizar

De quando em quando recomeça o debate sobre o papel do identitarismo na política.

Há uma ideia de que uma “pauta identitária” é mantida por um pessoas inconsequentes ficam lacrando nas redes sociais e gerando ressentimento. Ela seria antagônica ao trabalho de base, seria ativismo de sofá, e a principal causa da ascensão do neo-fascismo.

Discordo dessa noção. Primeiro, porque generalizar as preocupações de vários grupos como secundárias, que atrapalham as pautas “verdadeiras”, é totalitário. Cada posição tem que ser analisada em si.

Segundo, porque não dá pra pensar que há um campo político “puro e transversal” no qual a identidade não tem espaço.

Na verdade, a confusão acontece porque se inverte as coisas, forma e conteúdo. O identitarismo não é um conteúdo das redes sociais, mas, na verdade, é a forma como elas se organizam, um resultado direto da estrutura dessas plataformas.

Identidade deixou de ser um modo de se encaixar, uma norma, etiqueta. Ela se tornou uma questão de afirmação e expressão, é nela que encontramos não mais o que devemos ser, mas o que precisamos. Mais além, ela se tornou a forma como nós criamos sentido. E isso se tornou central no ciberespaço.

Podemos nos conectar com uma infinidade de outros indivíduos, surfamos num mar de informações. Fugimos das limitações geográficas tradicionais, e ele temos que usar outras fronteiras para entender esse mundo, uma proximidade semântica, afinidade… identidade. É por ela que nós conseguimos formar grupos, filtrar a comunicação, construir as famosas bolhas. Sem ela, perdemos a parte “social” das redes.

Na internet você se reúne com gente que jamais viu para falar do seu filme ou jogar video-game. Você tem um espaço para discutir receitas veganas e ver os argumentos sobre ateísmo e religiosidade. Você participa de um grupo de proteção aos animais, ou encontra apoio e informação sobre como cuidar do seu avô com Alzheimer.

Isso tudo sem depender de uma instituição centralizadora, de jornais e revistas, dos editoriais e dos colunistas. O conteúdo não é mais gerada periodicamente, mas constantemente. O custo de sua produção não está mais na escrita, mas na leitura. Aqui os comitês se desdobram em fóruns, chats e sessões de comentários, o que não está escrito sempre pode ser perguntado.

Os grupos são fluídos e variados, nós transitamos entre eles de acordo com nossa necessidades, e nossas atitudes e preocupações mudam em cada um desses espaços. Só que eles permanecem, mantidos por outras pessoas.

Os espaços trazem diferentes leituras políticas e projetam suas pautas. Desde as mais concretas e necessárias, como as emancipatórias, até as mais fúteis e autodestrutivas, como o movimento anti-vacina. Essa é a chave para se entender que o que se chama hoje de identitarismo não pode ser entendido como uma “má prática”.

Isso porque “se reunir para conversar” se tornou uma questão quase banal, não precisamos nem mesmo levantar e ir para algum local.

Importante lembrar que também criamos um novo modo de trabalho informacional, uma produção de valor ao redor dos afetos, do concordo, do discordo, do apoio e do odeio. Ele pode ser encontrado quantificando-se quantas pessoas são mobilizadas por uma coisa. “Clica no like e se inscreva no canal”, a chamada à ação e a reação são as ações que servem de fundamento para empresas da internet. De certa forma, se todos pararmos de dar likes, o facebook vai falir, mas se apenas você sair dele, não vai fazer diferença.

Um efeito colateral disso é que o mesmo conteúdo que atrai a pessoa, some na estrutura. A luta pela descriminalização da maconha e a conferência sobre a terra-oca são colocadas no mesmo nível porque há uma forma de compararmos as duas: basta medir quantas pessoas estão falando sobre elas. E sabemos disso, por mais que não tenhamos consciência.

E o grupo virtual tende a ser transparente. A discussão sobre o que falar, o que pensar, quais atitudes manter, onde se informar, como atuar, importantíssimas para se construir a identidade veiculada, é jogada para quem está de fora, e muitas vezes nem sequer entende o que se discute. O anonimato, a virtualidade, a rede tem suas dinâmicas sociais de poder, sempre construídas sobre as mesmas bases do identitarismo.

Até mesmo o politicamente incorreto e o neo-fascismo, que dizem combater o mimimi e vitimismo dos identitários, também são uma afirmação (muitas vezes tácita) de identidade, e que se vê com poder sobre as outras. Trollar, atacar quem você despreza, é uma atividade que ocupa muita gente, e que organiza seus grupos.

Daí o ressentimento que essas plataformas criam. Para organizar uma infinidade de informações, voltam-se para os diferentes egos do usuário, mas acabam apagando-o, se tornando quase como máquinas autônomas que geram e expõem leituras de mundo e necessidades.

O debate virtual, se é que pode ser chamado de debate, tem que ser rápido e rasteiro, usando memes, imagens e reações. O valor está na reação, e não no tamanho do texto. Até porque, por mais que as pessoas gostem de dizer que usam dados e lógica, e que seus adversários são irracionais e falaciosos, ninguém quer ficar quatro horas esperando para ver o que o outro vai responder. Aliás, num espaço tão relacionado com a identidade, estamos aqui para aprender, ou para afirmar?

Isso fica ainda mais complicado se vermos que cada grupo possui um arcabouço próprio, um paradigma de ver o mundo, que teria que ser decifrado para que alguém de fora possa entendê-lo. É a torre de Babel, há incompreensão e discórdia que exige muito trabalho para ser resolvida.

As dinâmicas das redes sociais funcionam ao redor de identidades, sua formação, expressão e seu conflito. Sem aceitar isso só sobra o apagamento. Vira ludismo, se for da plataforma, totalitarismo, se for do pensamento.

O verdadeiro problema que temos que resolver é como articular as pautas que aparecem no virtual com o real. As dinâmicas da rede não tem se provado capazes de fazê-lo, e precisamos de adotar outras práticas ou plataformas. De preferência que as pessoas adotem em larga escala.

Senão, o ciberespaço será apenas uma realidade virtual, uma Matrix que nos mantém inertes, num estado de semi-vida, conscientes, mas inatuantes.